Martin Scorsese queria fazer um filme sobre Jesus desde que
interiorizara que atrás de cada ida ao cinema existia a visão de um realizador
a orquestrar o resultado final. Reza a lenda, que terá sido Barbara Hershey, a
protagonista de Boxcar Bertha, a sua segunda longa-metragem, a apresentar-lhe o
livro The Last Temptation Of Christ, de Nikos Kazantzakis, durante as
gravações, antes ainda do sucesso de Mean Streets, Taxi Driver ou Raging Bull.
Ambos colaborariam para o transpor das páginas para o grande ecrã em 1988, o
que perfaz mais de uma década entre o início e o fim do projeto.
Depois temos o caso de Gangs Of New York. Supostamente,
Scorsese questionara-se toda a vida sobre a Nova Iorque primitiva, sobre os
primórdios da sua cidade natal, que na juventude lhe parecia esconder segredos
de um passado diferente da realidade que conhecia, dos arranha-céus art deco,
das comunidades europeias refugiadas nos seus bairros bem delimitados, das
luzes da Broadway e de Times Square. Ao ler sobre as violentas rivalidades numa
fase de crescimento abrupto, em especial com a vaga de irlandeses que fugiam da
fome, começou a compor um épico que apenas viu a luz do dia em 2002.
Isto tudo para ilustrar que o realizador não é estrangeiro
nenhum a ideias que demoram anos e anos a materializar-se. É esta ambição e
paixão que fazem de Scorsese um iconoclasta movido por uma vontade indomável de
fazer mais e melhor, com a devida vénia aos inovadores que no passado fizeram o
mesmo. Assim, 28 anos após um arcebispo de Nova Iorque lhe ter entregado uma
cópia do livro Silence, de Shusaku Endo, a intenção de o adaptar materializa-se
finalmente, numa era de paralelismos evidentes em relação ao Japão do séc. XVII
retratado. Talvez seja o destino, para quem acredita nisso.
Acreditar é um conceito omnipresente nos filmes de Scorsese.
Acreditar nas relações – Alice Doesn’t Live Here Anymore. Acreditar em nós
próprios – Raging Bull. Acreditar na família – Goodfellas. Acreditar no
dinheiro – The Wolf Of Wall Street. Normalmente o foco cai na incapacidade de
confiar e nas incertezas que isso gera, ou na fé cega e nas traições que daí
advêm. Silence insere-se na categoria da crença numa religião, como The Last
Temptation Of Christ e Kundun, dois projetos extremamente pessoais, cuja
aceitação popular foi marginal ou pouco expressiva.
Logo à partida, são exemplos de distanciamento das
convenções narrativas de que a generalidade dos filmes depende para criar
conflitos e definir personagens. Jesus a caminho da crucificação, o Dalai Lama ameaçado
pelo comunismo e, agora, estes padres portugueses num país que acaba de banir o
cristianismo, deambulam à procura de respostas, por realidades adversas,
carregando o peso crescente das suas dúvidas, realçado pela narração, que
segura todos os pedaços, numa cadência hipnotizante. Depois, apontam o foco à
introspeção, num apelo à humildade (por acaso, um valor jesuíta intemporal).
No entanto, não é descabido dizer que, com a expansão da fé
motivada pela globalização marítima, a igreja assumira arrogantemente que merecia
destaque universal, até encontrar fortes obstáculos políticos. Quando Rodrigues
(Andrew Garfield) sai de Macau com Garupe (Adam Driver), tem de andar
clandestinamente atrás de Ferreira (Liam Neeson), o mestre que os introduziu na
ordem, sendo incerto se o encontrarão vivo, morto ou apostático. Qual
Apocalypse Now eclesiástico, o caminho até à verdade, sobre o destino do
conterrâneo e sobre os limites da doutrina em que se alicerçaram, revela-se
confuso, penoso e surpreendente.
Nas aldeias por onde passam contactam com populações
reprimidas não por falharem no pagamento dos impostos, por se desleixarem no
trabalho ou por cometerem crimes, mas simplesmente por acreditarem em algo, algo
que dá significado às suas pobres vidas e a que não renunciam. A questão que
mais à frente surge é se se sacrificam pelos ideais do cristianismo ou se o
fazem pela família, pelos amigos e pelos padres. Serão o paraíso e a
ressurreição conceitos demasiado transcendentes numa civilização terrena e
prática como a japonesa? Nesse caso, as clivagens culturais talvez sejam
insanáveis.
Cabe a Rodrigues estabelecer a distinção. Tudo e todos
testarão as suas convicções, desde a violência que testemunha, passando pela
forma superficial como os locais encaram a confissão, às interjeições do
inquisidor de Nagasaki (Issei Ogata), um antagonista com a perfídia de Hans
Landa em Inglourious Basterds e, para desespero da personagem principal, com
uma noção superior do status quo contemporâneo. Não deixa de ser um confronto
entre a ingenuidade de um jovem e a objetividade de um sábio. A mestria de
Silence está em transformar a frustração previsível numa experiência
enriquecedora.
O cinema de Scorsese está repleto de homens solitários de
Deus e de dilemas morais. Longe das ruas de Nova Iorque e alinhada com a
maturidade de um septuagenário, é possível argumentar que esta é das
manifestações mais puras desses temas recorrentes. Só não é a definitiva porque
Garfield não é De Niro ou DiCaprio, nem Driver é Keitel ou Pesci. Sem o tom
desafiante de The Last Temptation Of Christ e sem a reverência falível de
Kundun, Silence chega, perante o ressurgimento global de movimentos
intolerantes, nomeadamente com a eleição de Donald Trump nos EUA, como um ato
de expiação certeiro.
9/10