domingo, 23 de outubro de 2016

Dazed And Confused (Richard Linklater, 1993)

Não é segredo que os Led Zeppelin pediram emprestadas sem nunca mais devolver as melodias de vários clássicos do seu catálogo. Logo no primeiro álbum encontramos Dazed And Confused, que hoje é descrita como sendo inspirada numa música com o mesmo nome de Jack Holmes, artista com quem Jimmy Page se cruzara ainda no tempo dos The Yardbirds. Inspirada é um eufemismo. Provavelmente consciente das parecenças deste filme com American Graffiti, o realizador Richard Linklater ironiza na escolha do título e segue em frente com a sua visão de um dia na vida de adolescentes americanos, sem receio do pastiche.

George Lucas preferira o mês de setembro em vez do fim do ano letivo numa escola secundária, diferença subtil que torna Dazed And Confused mais relaxado, porque um verão inteiro de liberdade se avizinha e a entrada na universidade ainda não é iminente. As conversas focam-se menos nas incertezas quanto ao futuro ou em relações em risco. Pelo contrário, resvalam para férias, festas, rituais escolares e romances de rápida evolução. Ninguém acaba a trocar a terra pelo resto do mundo, antes a celebrar atos de rebeldia imprudente. Estes elementos estão omnipresentes em ambos, só que em quantidades totalmente inversas.

Os eventos sucedem-se aleatoriamente, não há uma história, apenas deambulações, próprias da juventude. Todas as gerações têm as suas modas e se tentam distinguir das anteriores, mas há estereótipos que parecem perpetuar-se: o bully, o cromo, o atleta, entre outros. O que muda são os comportamentos e, com os anos 70 em pano de fundo, Dazed And Confused pisa mais o risco. O álcool e as drogas disseminaram-se como nunca, metade dos diálogos têm a ver com cerveja ou marijuana. Nas entrelinhas pode-se ler que esta não é a América em estado de graça no pós-guerra, é a América do Vietname, sem Kennedy e depois de Woodstock.

Com Aerosmith, Kiss, Alice Cooper ou Foghat na magnífica banda sonora e Matthew McConaughey, Ben Affleck ou Parker Posey a darem um ar da sua graça, é a contracultura que ganha o papel principal, consistente com o perfil de autor alternativo, antiautoritário e autodidata de Linklater. A forma como alterna o foco entre as várias personagens é mais equilibrada do que em Slacker, o seu filme anterior, não aparecem e desaparecem, vão e vêm, havendo várias interligações. Retrata-se com maior proximidade um determinado espaço e tempo, uma qualidade que foi aperfeiçoando ao longo da carreira.

8/10

terça-feira, 18 de outubro de 2016

BFI London Film Festival 2016

Só para dizer que fiz uma modesta passagem pelo BFI London Film Festival este fim-de-semana, mais concretamente no sábado, onde vi, no cinema Vue em Leicester Square, o novo filme de Paul Schrader, Dog Eat Dog, uma comédia negra com Nicolas Cage e Willem Dafoe em estado de delírio total. Sinceramente, a melhor parte foi o realizador estar presente e pronto para interagir com a audiência. Afinal, estamos a falar do homem que escreveu Taxi Driver, Raging Bull ou The Last Temptation Of Christ, para mencionar algumas  das colaborações com Martin Scorsese.




sábado, 8 de outubro de 2016

Successive Slidings of Pleasure (Alain Robbe-Grillet, 1974)

Uma artista adolescente é presa por supostamente ter assassinado a mulher mais velha com quem vivia. Se por um lado esta insiste que um estranho entrou no apartamento e terá cometido o crime, apesar de lhe pertencer a tesoura usada como arma, por outro diverte-se com a atenção que lhe é dedicada pelo detetive da polícia, o juiz local, o padre e as freiras da prisão, inventando histórias de prostituição, sadomasoquismo e lesbianismo para os chocar – e aos espectadores, diz mesmo uma personagem.

Com Robbe-Grillet as coisas nunca são fáceis de decifrar. Aliás, são propositadamente impossíveis e quando começamos a tentar descobrir o que é verdade e o que é mentira no contexto do enredo é quando o autor passa a ter-nos na mão, porque no cinema tudo é uma ilusão. Assim, é permitido o inexplicável. Successive Slidings Of Pleasure assemelha-se a um labirinto com infinitos becos sem saída e no fim volta-se à entrada. Através de padrões, motivos e repetições somos chamados à atenção para palavras, atos ou objetos que podem ter implicações palpáveis para o caso ou valor puramente surrealista.

A certa altura, o juiz e a adolescente testam-se através de livre associação. O que se conclui através desse método de psicanálise parece ser vago e condicionado pelo que se procura naquilo que se ouve, e cada um procurará algo diferente consoante a sua sensibilidade. Da mesma forma, a pá encontrada num armário pode ou não ter relação com a pá do coveiro que enterra uma amiga da escola. Pela masmorra de tortura medieval em uso pelo clérigo pode estar a ser estabelecido um caso real de maus tratos, um paralelismo simbólico com as bruxas de antigamente ou uma fantasia sexual perversa. E por aí fora.

Tal como em Eden And After, a nudez e a violência são constantes, andam de mãos dadas e têm tanto de perturbador como de fascinante. Robbe-Grillet preenche cada frame de película com a mesma duplicidade de cada página dos seus textos. Ninguém cria um enigma como ele, ou não estivéssemos a falar da pessoa que escreveu Last Year At Marienbad (1961). Hostil à ideia de uma narrativa, em Successive Slidings Of Pleasure constrói outra vez um mundo de provocações intelectuais aberto a todas as interpretações.

8/10

domingo, 2 de outubro de 2016

The Lobster (Yorgos Lanthimos, 2015)

David (Colin Farrell) é um arquiteto em processo de separação numa cidade distópica onde estar solteiro é tratado como um crime. Assim, tem de se retirar para um complexo no campo com todos os confortos de um hotel de luxo, onde será induzido a encontrar uma nova parceira entre os restantes hóspedes, nos 45 dias em que lá pode permanecer, ao fim dos quais é compulsivamente transformado num animal à sua escolha. Logo de início define a sua preferência por lagostas, porque vivem um século, têm sangue azul como os aristocratas e mantêm-se férteis durante toda a vida. Mais à frente, enfatizam-lhe a alta probabilidade de ser apanhado do mar e cozinhado vivo. Como se o absurdo estivesse na opção tomada e não num sistema social que obriga a metamorfoses forçadas.

O filme é hilariante e deprimente em igual medida na apresentação das regras destinadas a controlar as relações da população, tanto na metrópole, onde a polícia interroga quem anda sozinho no shopping, nesta espécie de centro de acolhimento, onde são encenadas situações cujo desfecho é muito diferente quando se tem alguém por perto e quando não se tem, para incentivar as uniões, como na floresta onde se refugiam os desertores, à qual vai parar, em que todos admitem sem inibições quando se masturbam, mas só podem dançar sem contacto físico, porque na cabeça distorcida da sua líder (Léa Seydoux) a melhor revolta não é as pessoas juntarem-se por amor, mas sim não se juntarem sob nenhuma circunstância. Nem em exílio David usufrui de um convívio genuíno e sem restrições.

Com tanto extremismo, não surpreende que na civilização os casais sejam artificiais, agarrando-se a ou inventando insignificantes pontos em comum para justificar a sua permanência na raça humana, e fora dela sejam impossíveis, quando a adversidade até cria condições para se aproximarem naturalmente. Primeiro, David junta-se à mulher mais instável do hotel, propondo simular uma total falta de sentimentos. Quando ela, para o testar, lhe mata o cão, que terá sido o seu irmão, ele, como não é um psicopata, chora, denuncia-se, atordoa-a e foge. Na clandestinidade, aproxima-se de uma míope (Rachel Weisz) só por também o ser, formatado que está para reconhecer esses detalhes como essenciais neste mundo despersonalizado, e até acaba por estabelecer com ela uma ligação tão perto do amor quanto possível.

A líder descobre e cega-a. No fim, ele ameaça tirar os próprios olhos, ou seja, apesar de tudo precisa de continuar a partilhar uma característica aleatória para validar esta afeição, não consegue libertar-se das convenções em que foi criado. Lembrei-me do alheamento visto em Her, ainda que The Lobster não o retrate apenas como consequência das novas tecnologias, estende-o aos valores atuais do ocidente em geral, nem com a leveza de Spike Jonze, antes com a gravidade (e a tortura animal enquanto metáfora) de Michael Haneke misturada com o humor seco de Wes Anderson. Quando temos a natalidade a diminuir, estudos que apontam a geração Y como a menos ativa sexualmente dos últimos 100 anos e a Dinamarca a promover o coito com efeitos reprodutivos através de campanhas de televisão, dá que pensar.

8/10