Quando um filme se apresenta com uma narradora infantil a
debitar tiradas simples mas filosóficas sobre a natureza e os corações das suas
criaturas enquanto a câmara procura incessantemente o movimento das árvores, da
água e do fogo-de-artifício que a rodeiam, é difícil não pensar em Terrence
Malick, para quem o lugar da humanidade no universo e a relação entre ambos são
fontes de constantes dilemas, alguns dos quais demasiado esotéricos para terem
explicação empírica.
No entanto, Hushpuppy (Quvenzhané Wallis) não questiona,
apenas afirma. Na sua inocência, absorve o que vê e o que ouve, criando a sua
versão dos factos da vida, como qualquer criança, o que dá a Beasts Of The
Southern Wild um tom de fantasia optimista que Benh Zeitlin torna surpreendentemente
compatível com o cenário pantanoso do Louisiana, à mercê da influência da
industrialização e das alterações climatéricas, onde habitam comunidades à
margem da sociedade.
Apesar das catástrofes que se sucedem, a sua perspectiva é
inalterável, ficando nas mãos do espectador destrocar a precariedade das
condições na comunidade da Banheira, onde há uma montanha de lixo por cada
cipreste exuberante, a morte da mãe, apesar de Hushpuppy estar convencida que
ainda a vai encontrar um dia, e a desconsideração que o pai tem pelas
autoridades e pela sua própria saúde, deixando a filha frequentemente à guarda
de terceiros ou ao acaso.
Não é propriamente má parentalidade, mais a necessidade
angustiante de preparar a pequena para a possibilidade da orfandade e o quotidiano
natural de um mundo algo perdido, numa época nunca especificada, que tem tanto
de idílico como de duro, onde as crianças andam ao ar livre, sabem que os
caranguejos são comestíveis mas também seres vivos como elas, e onde pode haver
pobreza material, mas nunca espiritual. Acima de tudo, este mundo pertence a Hushpuppy, e
não o contrário.
O realismo mágico de Zeitlin é de uma alegria melancólica
consistente, ainda que a forma nem sempre seja a mais interessante. As câmaras
de mão frenéticas às vezes não permitem processar as imagens nem encontram os
melhores ângulos e a sequência do bar de alterne flutuante dá uma conclusão sofrível à ideia de que a menina precisa da mãe. A
jovialidade de Zeitlin é de louvar e certamente que o seu melhor cinema ainda
está para vir.
7/10
A grande surpresa indie do ano passado. Grande representação da Wallis. Concordo com o que dizes, com excepção no que à cena do bar flutuante diz respeito. É uma das mais belíssimas cenas do filme e um importante ponto de viragem no modo como Hushpuppy e as outras miúdas se afirmam perante o mundo.
ResponderEliminarCumprimentos,
Rafael Santos
Memento mori
Creio que a magia desse filme se dê pelo fato do roteiro ser tão profundo, se não questiona afirma os questionamentos anteriores.
ResponderEliminarBelo texto!
Abraço
O que eu percebi foi que a mãe da Hushpuppy já estaria morta, mas parece que nem toda a gente faz essa ligação. Seja como for, é uma forma sofrível de dar uma conclusão à ideia de que a menina precisa de uma mãe, que está longe de ser o melhor do filme de qualquer forma. Obrigado pelos comentários!
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