Qualquer interpretação deste
filme tem de começar… pelo fim. Céline (Julie Sokolowski) tenta matar-se em
duas ocasiões e não é claro se sai com vida de ambas, o que também não ajuda a
posicioná-las cronologicamente. A linearidade da história é questionável nos
últimos 20 minutos, mas se assumirmos que realmente Hadewijch acaba com um
flashback podemos ter aqui um exercício de imaginação do futuro de Mouchette
enquanto jovem adulta, caso ela tivesse nascido nos anos 90 e alguém a tivesse
tirado do lago a tempo. Dumont inverte o contexto familiar da personagem (o pai
não é um alcoólico pobre, antes um ministro pusilânime) e insiste numa
problemática religiosa que a criança de Bresson não tinha mas poderia vir a
ter.
Se foi possível o título Rebel
Without A Cause metamorfosear-se em Fúria de Viver no português, talvez se
pudesse traduzir Hadewijch para Fúria de Amar. É a confusão de sentimentos e de
sinais que causam essa irritação e os leva a fazer as perguntas e a tomar os
caminhos errados. Céline tem apenas certeza de que não encontrará o amor que deseja
em prazeres carnais (se continuarmos com a analogia a Mouchette é possível
especular que foi vítima de pecados mundanos, o que lhe atribui um determinado
nível de perdão católico, cuja manifestação procura). Assim, apenas Jesus a
pode preencher e ela pergunta-lhe “porque me obrigas a perseguir-Te
incessantemente? Porque foges de mim?”.
A estudante de Teologia é
convidada a sair do convento onde estudava por ir longe demais nos seus
sacrifícios. As freiras apontam correctamente a falta de humildade e dignidade
dos seus actos, mas falham ao interpretá-los como penitências. O interesse de Céline é apenas ver o
invisível – o impossível, portanto. De volta a Paris, conhece Yassine, um
muçulmano da sua idade, que eventualmente a apresenta ao irmão mais velho, um
crente em Maomé que cedo descobrimos não ser tão tolerante quanto parece. De
uma religião à outra é apenas um saltinho, porque o extremismo, seja no ódio ou
no amor, é cego e qualquer solução fácil se pode maquilhar de certa.
Céline não vê culpados – “Ele
apareceu-me com frequência e fez-me perceber o que é amar, e, no entanto, o
mundo está cheio de sofrimento” – e Nassir não vê inocentes – “achas que
existem inocentes em democracias, onde eleges os teus representantes?”. Ambos
cedem ao terrorismo. Pelo meio, David Dewaele tem uma aparição discreta como
uma espécie de messias salvador, que é ironicamente mal aproveitado por quem se
cruza com ele e pelo argumento. O calculismo e a frieza do estilo de Dumont
realçam, mais uma vez, um mundo de vazios, sem respostas da religião, da
política, da polícia ou da sociedade para a imigração, para o crime ou para as
novas gerações.
7/10
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