American Hustle tem sido descrito
como um filme de Scorsese com pouco açúcar e calorias, uma versão light de
clássicos como Goodfellas e Casino; em certa medida, não dá para discordar.
Dois vigaristas vêem-se a contas com a polícia, numa malha de intenções e
esquemas onde todos tentar ser mais espertos que todos, qual deles o mais
extravagante e idiossincrático, com muito ritmo nos diálogos e na montagem e
estando os anos 70 em pano de fundo. Logo a abrir temos até a voz-off
característica (apesar de cair em desuso ao longo das duas horas de duração)
que apresenta Irving e Sydney, para nos dar um resumo das suas expectativas e
do que têm feito até determinado ponto. Ele é gordo e criativo a nível capilar,
realçando-se a verdadeiramente impressionante transformação física de Christian
Bale, ela foi stripper e tenta adaptar-se às circunstâncias, não renunciando ao
crime, e Amy Adams sai-se sempre bem a fazer de ranhosa destemida que exerce
influência sobre a sua cara-metade, viu-se em The Fighter e The Master. Apaixonam-se.
As homenagens chegam ao ponto de
algumas cenas parecem vir de um copy/paste qualquer. Louis CK lembrará
fisicamente, para os mais atentos, Chuck Low, que interpretou o vendedor de
perucas comicamente estrangulado com o fio dum telefone por não querer pagar a
protecção da máfia em Goodfellas. Surpresa: aqui, o ruivo com excesso de peso leva
com um na testa. Isto para nem falar na presença de Robert De Niro. Sim, a
escolha entende-se pela lógica de David O. Russell ter transferido
colaboradores dos seus filmes anteriores para o presente, mas este caso em
particular parece também ser uma tentativa de dar credibilidade à sua incursão
por um género que até agora lhe era estranho. Em Casino estávamos no meio do
crescimento de Las Vegas, em American Hustle somos envolvidos na fundação de
Atlantic City como hoje existe, ou seja, num antro de jogo na costa este
americana.
Russell foca-se quase
exclusivamente nos actores: para além do casal protagonista, aparece Bradley
Cooper, o polícia Richie DiMaso, que tenta dar passos maiores do que as pernas,
Jennifer Lawrence, a esposa-troféu de Irving, uma loira platinada desmiolada
que traz soluções e problemas em igual medida, e Jeremy Renner, o mayor que até
é honesto e se preocupa com os cidadãos, porém acaba por ser arrastado para
negócios ilegais. Os adereços abundam, na onda das emulações, e talvez afoguem
o argumento, mas seria injusto dizer que não está aqui um conjunto de personagens
que ganham uma força incrível graças a estes nomes. Cada um vive o seu papel
com credibilidade e liberdade, para além da caracterização está o talento e a
confiança no realizador que permitem passar a ideia de que tudo é improviso e que
permitem cenas como o karaoke de Rosalyn enquanto limpa a casa ou as palmadas
de Bale no rabiosque de Adams.
Dá um gozo tremendo decifrar os
subterfúgios, as hesitações, as excitações, as palermices resultantes das suas
interacções; no fim fica-se com dificuldade em entender aqueles vídeos dos
bastidores acrimoniosos de I Heart Huckabees que corriam no Youtube ou como é
que alguém como Russell irritou, em tempos idos, George Clooney de tal forma
que este o esmurrou no set de Three Kings. O próprio encara esta fase da
carreira como uma segunda oportunidade, e essa realidade tem estado presente
desde The Fighter. Em American Hustle, quando Richie prende Irving e Sydney,
oferece-lhes uma, ajudá-lo a compreender os métodos de fraude usados na altura
para capturar corruptos, ganhando como troca uma redução nas penas ou mesmo
absolvição, contudo isso é apenas o início. A relação do casal é a base da
história e começa a ser testada a partir daí; quando fazem as pazes e tentam
limpar a porcaria que fizeram o filme reencontra a adrenalina que se esvai em
alguns momentos intermédios e conduz a conclusões satisfatórias.
7/10
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