Os anos 1960 foram a última época dourada do musical em
Hollywood, basta ver que nessa década foram quatro os vencedores do Óscar de
Melhor Filme que se inserem nesse género e, desde então, houve apenas Chicago.
Não sendo o maior fã de ver pessoas começarem a cantar de cada vez que algo
minimamente relevante, positivo ou negativo, lhes acontece, forçando rimas e
falhando o playback, há sempre excepções. My Fair Lady não é uma delas e as
razões vão muito para além dessa questão.
Rex Harrison interpreta um pretensioso mestre da fonética,
aparentemente desempregado mas rico, que dedica os dias a adivinhar a
proveniência de quem encontra na rua através dos seus sotaques. Em Londres
consegue colocar alguém a uma distância máxima de dois quarteirões donde moram,
o que seria cómico se não fosse totalmente irrealista e irrelevante. À saída da
ópera, atura uma vendedora de flores com voz particularmente esganiçada que nem
a fuligem na cara oculta ser Audrey Hepburn.
O professor Higgins comenta na altura com um amigo, o coronel
Pickering, que conseguiria fazer da rapariga, a quem dá uma boa esmola (talvez
por masoquismo tenha gostado de ser levado à irritação), uma duquesa, se
tentasse. Eliza Doolittle ouve, leva as palavras demasiado a sério e no dia
seguinte aparece à porta do homem com o intuito de pagar por aulas de dicção,
para, no mínimo, poder subir na vida até florista numa loja. Tratada como lixo,
aceita submeter-se a todo um curso de boas maneiras.
O que a conquista são os chocolates que o professor lhe
oferece quando ela se preparava para bater a porta, vexada. Sim, porque toda a
gente sabe que as mulheres não resistem a bombons e nada tem mais piada do que
vê-las sujeitarem-se a abusos psicológicos por velhotes que não têm nada para
fazer só para terem essa recompensa. Bem, o pai de Eliza aparecer em casa de
Higgins para exigir 60 libras para álcool e deixar a filha entretanto a morar
lá parece ser pelo menos tão engraçado para o argumentista.
Ainda assim, uma música com as empregadas como coro diz-nos
que devemos sentir pena do doutor, porque odeia a coitada que se sujeita a
quase tudo para que ele satisfaça o seu complexo de superioridade mas perde
horas de sono para a transformar numa senhora. Infelizmente, o filme gera um
conflito de intenções ao pôr Hepburn com vontade de matar o seu malicioso
patrono. Apesar de tudo, ninguém a está a obrigar a nada. Tem roupas e calorias
à borla. Mesmo que por capricho dele, não está mau.
Eliza pronuncia bem, ao cabo de meses, a lengalenga “the
rain in spain stays mainly in the plain”, segue-se uma música que consiste
apenas dessa frase com a ordem das palavras trocada (porque rima sempre, que
esperteza!) e outra sobre dançar à noite (wtf?) e assim sabemos que está pronta
para ser introduzida na alta sociedade, incluindo ir às corridas de cavalos e
ao baile do embaixador, os momentos ideais para a actriz exibir a sua beleza em
dois vestidos de designer e conhecer um interesse amoroso.
Interesse que é mais dela, amor mais dele, e só fica a vaga
noção de que num futuro para além do argumento pode haver algo entre eles
porque o rapaz é tão persistente quanto rico e ingénuo (de tal forma que
admite, rimando “before” com “before”, que se apaixonou assim que a menina
contou como o pai era um bêbado) e parece dormir no passeio durante dias
enquanto a acção se desenvolve, à espera de a rever. Freddy é apenas a
segurança de Eliza e, como tal, o mais triste namoradinho da história do
cinema.
Com o sucesso que faz nas suas aparições públicas, alimenta
o ego de Higgins, que dá o seu projecto por concluído, tornando-se claro que
não tem mais planos para a artista anteriormente pertencente às classes baixas.
Parece que só ao voltar do baile ela se apercebe de que é descartável e a
partir daí temos de ter pena dela, porque, claro, não pode voltar para donde
veio. Agora é uma princesinha e tem direito a todos os luxos do mundo, pela
simples razão de que passou a estar habituada a isso.
Ao mesmo tempo, por ironia do destino e não por ter recebido
auxílio da filha, o seu pai passou também a fazer parte da classe média, mas
está insatisfeito porque a vida deixou de ser simples e de consistir de dormir,
beber e pedir emprestado. Agora tem de ceder aos vícios e malefícios inerentes
à sua nova condição, como casar-se, ir à igreja ou ter de pagar pelo que
consome. Como é perigosa e má para a sociedade a classe média, comparando com a
nobreza do alcoolismo e da pobreza!
Esse encontro fortuito não muda a relação entre ambos -
apenas sedimenta na mente de Eliza a ideia de que não pode voltar atrás. Então,
procura a protecção da mãe de Higgins (que deve ter 200 anos, já que ele parece
um octagenário) e que se mostra chocada com o facto de o filho ter sido
extremamente claro quanto a apenas querer usar Eliza… como se alguém lhe
tivesse apontado uma pistola à cabeça e não chocolates. Higgins é um idiota,
mas apenas por não ter, pelo menos, sacado um beijo à Audrey Hepburn.
Porque é que isso não acontece? Talvez por ele ser mais gay
do que o José Castelo Branco (e pior cantor – a sério, eu a gorgolejar Betadine
para a halitose canto melhor que o Rex Harrison aqui). My Fair Lady contém as
músicas mais ofensivas para o sexo feminino que eu já ouvi; percebo que o
propósito fosse explorar com alguma ligeireza a misantropia do professor, mas o
seu assumido desejo de que as mulheres se parecessem mais com os homens roça o
ofensivo e cultiva a ideia de que o coronel Pickering deve ser o seu amante.
Depois disto tudo, Higgins tem um momento de fraqueza e
canta que precisa daquela asinina, ela que nunca fez nada em casa, que lhe
volta as costas, que vira a mãe contra ele e que apenas estorvava a vida do “pobre
doutor”. Eliza volta mesmo e sorri perante a sugestão de uma tarefa doméstica.
Depois de todos os berros de Hepburn, de se ouvir o sotaque britânico até à
náusea durante três horas, das facadas na nobre arte da canção, este momento de
silêncio consegue ser o mais irritante do filme.
Pegue-se por onde se pegar, My Fair Lady é um desastre de
história, de interpretações, e inclusivamente musical. As duas personagens
principais são movidas por um egoísmo feroz, apenas reforçando que não importa
de onde se vem, o que importa é a educação que se tem. Eliza é estragada por
duas figuras de total incompetência, o pai e o professor, e o resultado é uma
mulher brejeira mas peneirenta. Foi por causa de filmes destes que apareceu a
Nova Hollywood.
1/10
Um dos grandes musicais de Hollywood, que revejo de vez em quando, sempre com muito prazer. E atenção à falácia habitual de que "gostos não se discutem". Discutem-se sim, e, mais do que tudo, educam-se. É por isso que há por aqui muita aprendizagem a ser feita...
ResponderEliminarJá agora, fiquei curioso com essa tal de "Nova Hollywood". De que se trata?
Sem dúvida, por isso agradeço o comentário :) Nova Hollywood é o termo normalmente usado para a geração do Scorsese, Friedkin, Coppola, entre outros, que se começou a notabilizar no fim dos anos 60/início dos anos 70, com novas ideias que mudaram o cinema americano de várias formas.
EliminarAh bom, essa "Nova Hollywood" conheço eu bem, por momentos pensei estar-se a referir à época actual. De qualquer forma não vejo que relação possa haver entre musicais como "My Fair Lady" e o aparecimento dessa nova geração de talentos. Julgo que foram muito mais influenciados pelo cinema europeu, sobretudo do que se convencionou chamar de "Nouvelle Vague"
EliminarEu não disse que foram influenciados por filmes destes; é exactamente o contrário, surgiram como reacção contra filmes destes.
EliminarEu percebi a ideia. Só que isso não é verdade, qualquer deles admirava o musical. Basta ver o que Scorsese fez com "New York New York" ou Coppola com "One From The Heart". Métodos diferentes, é claro, mas ambos a prestarem homenagem ao musical.
EliminarSim, mas esses não são filmes que definem as suas carreiras nem essa geração.
EliminarNão estou a discriminar o musical, mas sim a realçar as limitações e a estagnação do sistema de estúdio na altura.
Considero "New York New York" um dos melhores filmes de Scorsese. Se define ou não a sua carreira, isso é subjectivo. Aliás, acho que é muito difícil um único filme "definir" a carreira de qualquer cineasta. A não ser que não tenha feito mais nenhum...
EliminarQuanto ao "One From the Heart", se mais qualidades não tivesse (e tem-nas e muitas) deu-nos a conhecer até aonde um homem consegue ir para concretizar o seu sonho, contra tudo e todos. No caso concreto, foi até à falência, como se sabe. Mas se não fosse esse filme saberíamos alguma vez de que estirpe o homem-Coppola é feito?
Se "My Fair Lady" representa as "limitações" e a "estagnação" do sistema de estúdio, então fá-lo muito mal...
Estou a ver que publicou hoje um texto sobre o My Fair Lady! Prometo que vou ler.
EliminarGosto imenso do New York, New York.
Não era para postar já, embora estivesse agendado para breve. Mas confesso que fiquei "chocado" (cinematográficamente falando, claro) pelo que li por aqui...
EliminarTambém já abordei o "New York New York":
http://ratocine.blogspot.pt/2011/04/new-york-new-york-1977.html