A história da freira austríaca que tinha imenso
jeito para cantar e para lidar com crianças é das mais conhecidas do cinema.
The Sound Of Music é um filme que atravessa gerações e talvez detenha o recorde
de repetições na RTP1, quanto muito tendo a concorrência de Ben-Hur para esse
título. Por conseguinte, está tão batido que falar nele, quanto mais
mencioná-lo como um dos melhores musicais de sempre, tornou-se trivial, e esse
é o primeiro passo para o subestimar criminosamente.
Não sou um grande fã do género, que raras vezes me
surpreende e me estimula, por isso acreditem quando digo que esta é uma
excepção monumental, quase tanto como a cidade de Salzburgo que, encravada no
meio dos Alpes com a sua arquitectura barroca e com o seu rio serpenteante,
serve de cenário mais que perfeito tanto para as cenas mais citadinas e
sombrias como para as cenas mais bucólicas e agrestes. Sim, porque é bom relembrar
que, a pairar sobre as baladas e os namoricos, está a ameaça nazi.
Logo de começo, os mais icónicos planos de helicóptero
gerados antes de The Shining, que mostram a região com vividez, até se
encontrar Julie Andrews de avental no topo de uma colina com os braços abertos,
prestes a irromper na canção do título, que nem é a minha preferida. Essa, não
só pela esperteza da letra como por ser utilizada em momentos extremamente
díspares em termos de tom, é a “Do-Re-Mi”, com a qual Maria, já fora do convento
e a fazer de governanta, apresenta a arte aos filhos do capitão von Trapp.
As músicas fazem a ocasião e a grande maioria simplesmente
resulta, seja pela alegria da descoberta do amor e da reconstrução de uma
família, seja pela tristeza do fim da Áustria como até ali se conhecia. O filme
é movido por noções de maternidade – Maria consegue encontrar a sua verdadeira
vocação e tornar-se essencial na vida dos sete irmãos, órfãos de mãe e
verdadeiros pesadelos para dezenas de amas, ao mesmo tempo que perdem juntos a
pátria-mãe, vendo-se mesmo forçados a deixar tudo e a fugir para a Suiça.
Não é fácil equilibrar comédia e drama com esta
harmonia; veja-se como a evolução de Rolfe, um moço de recados que aparece
regularmente na mansão dos von Trapp para entregar telegramas e cultivar a sua
paixoneta (correspondida) por Liesl, a mais velha, acontece com tanta subtileza
que no fim se fica mais triste do que surpreendido com os seus actos. Primeiro
parece bom rapaz, mas muitas classes abaixo de Liesl. Mais tarde, começa a
fazer a saudação da extrema-direita. No fim, denuncia quem antes admirava.
Quando se fala de The Sound Of Music nunca se fala
do sabor agridoce que deixa por sabermos que, embora os protagonistas se safem,
milhões de pessoas não beneficiaram da mesma sorte, muitos tiveram de aceitar à
força cargos na aparelhagem de Hitler, como exigiram a Georg von Trapp, outros
foram presos e o resto viu tudo à sua volta ser destruído nos anos que se
seguiram. Para mim, é isto que separa o filme, podia mas não acaba no casamento,
oferece um final feliz mas vai um pouco mais além do entretenimento.
A realização de Wise é excelente; fico surpreendido
com a facilidade com que consegue adaptar-se a géneros diferentes, por ventura
à custa duma identidade própria, mas quem filma tão bem boxe (The Set-Up),
terror (The Haunting) e musicais merece respeito. Os 70mm de bitola permitem
uma grandiosidade memorável, a primeira visão, tirada a regra e esquadro, do
interior da casa ou as cenas do festival são exemplos. Sim, The Sound Of Music
já deu na TV mais vezes que a Praça da Alegria, mas continua a ser um grande
clássico.
9/10
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