domingo, 9 de novembro de 2014

Interstellar (Christopher Nolan, 2014)

Interstellar reforça o estatuto de Christopher Nolan como o realizador que devora mais artigos da Wikipédia. Depois de elucubrações sobre sonhos tão intricadas que exigiram uma personagem, a de Joseph Gordon-Levitt, cujo único propósito era explicar o enredo em Inception (apesar disso, destaca-se pela intensidade das sequências de acção diversificadas e simultâneas), eis que o seu regresso se proporciona por intermédio de um desejo de homenagear o seu filme preferido, 2001: A Space Odyssey, claramente expresso pelas pistas visuais espalhadas com insipidez e algo aleatoriamente, como emparelhar um plano de alguém no leito da morte com outro de alguém à deriva no espaço ou dar personalidade a robôs de configuração monolítica.

Quando se atinge um equilíbrio tão meritório entre dinâmica narrativa e eficiência técnica como aconteceu em The Dark Knight compreende-se que comece a borbulhar um sentimento de audácia. Bandas desenhadas parecem, depois de tanto sucesso, cada vez menos o limite daquilo que se pode explorar com os recursos à disposição e a mente divaga para assuntos do subconsciente ou da ciência que não se ouve falar no cinema, apesar de preocuparem figuras de QI muito elevado, como wormholes, viagens no tempo e a lei de Murphy. Não quero ridicularizar tal desejo, aliás muito louvável, mas se há adágio adequado para Interstellar é o princípio de Peter, segundo o qual um trabalhador só pode ser promovido até ao seu nível de incompetência.

Matthew McConaughey é um ex-piloto e engenheiro agora remetido à agricultura, como grande parte da humanidade, ou assim somos levados a crer. Estamos situados num futuro não muito distante em que a população mundial regista uma curva descendente e os recursos naturais estão em falência. Existe paz, só que exige minimalismo nos modos de vida. Imagens de campos intermináveis de milho e tempestades de areia são entrecortadas por testemunhos com ar documental de idosos sobre os tempos difíceis, que havemos de perceber que pertencem ao futuro, naquela que é a primeira má decisão: isto é pura ficção e bastante pessoal até, por isso ninguém quer saber de humanos anónimos se a história também não quer.

Sucedem-se três quartos de hora do quotidiano, tão normal quanto possível nestas circunstâncias e considerando que a matriarca morreu com cancro, da família de Cooper, que inclui um filho mais velho, uma filha mais nova e o sogro. A química entre o pai e a rapariga é carinhosa; o primeiro prefere educar a segunda para ser audaciosa e não se conformar com o pouco que tem e muito menos a acreditar num sistema de ensino aparentemente tão asséptico e anormal que nega as alunagens dos anos 1960 numa altura em que há tecnologia suficiente para enviar todos os alunos das redondezas ao Mar da Tranquilidade e voltar, se bem que isso não aconteceria devido à contenção de custos generalizada.

Precisamente por essa razão, a NASA passou à clandestinidade, operando agora numa base secreta que, graças a circunstâncias bizarras posteriormente esclarecidas, com toda a certeza devaneadora tornada constante ao longo do filme, os dois descobrem. A iminência do fim do planeta Terra é relatada com grandes ornatos verbais, incluindo o sempre credível sotaque britânico de Michael Caine, e Cooper torna-se imediatamente o homem adequado para pilotar um foguetão que vai ser atirado por um wormhole para procurar o melhor poiso para onde a nossa espécie possa emigrar ou que possa popular com o esperma e os óvulos que vão na bagagem, dizendo-se então adeus aos que restam aqui em baixo na parvónia.

O critério nas três missões anteriores de reconhecimento havia sido a falta de laços emocionais dos astronautas, contudo agora é diferente, apenas porque Nolan tem de meter um drama movido por uma boa dose de culpa pelo meio. Não é comum inserir um suplemento tão caseiro a um espectáculo de ficção-científica da dimensão que Interstellar anuncia; até que ponto isso resulta é discutível. O protagonista é egoísta ao ponto de se julgar indispensável e deixar os seus rebentos órfãos, já que o trabalho é afectado por percepções diferentes da passagem do tempo, explicadas com excertos da teoria da relatividade (a sério, liguem o WiFi e vão consultando a Wikipédia), e a miúda ao ponto de não se despedir do pai.

Murphy envelhece ao longo do filme e exprime unicamente ressentimento por se terem separado desta maneira. Por conseguinte, a partir do momento em que levantamos voo pela primeira vez só o visual e a acção podem despertar interesse. Remetendo para as naves em baile no vazio da obra de Kubrick, o astro oceânico de Solaris e as paisagens gélidas de Oblivion, temos alguns planos razoáveis, encurtados pela necessidade de se recitar outros manuais científicos. Mais uma vez se prova que o realizador é, no máximo, um óptimo tarefeiro, que não tem olho para acompanhar a grandiosidade dos conceitos que o fascinam, não se podendo esperar qualquer virtuosismo vindo detrás da câmara. Dêem-me um Alfonso Cuarón sobre isto, por favor.

Posto isto, é incontornável que há boas decisões entrementes. Já vimos os treinos a que os astronautas são sujeitos até à exaustão, pelo que se agradece que tenham sido cortados, McConaughey é muito carismático e, no fundo, fico contente que alguém tenha tentado fazer um filme sobre a extinção humana que não se resuma a um meteorito se estatelar contra nós. Interstellar é confuso e desequilibrado, ainda que minimamente original. Acho que toda a gente ficaria grata por dedicar o seu dinheiro e trabalho para um projecto global de salvação coordenado pela NASA quando já se conhecem três planetas potencialmente adequados para o futuro, rendendo a clandestinidade da agência à irrelevância, mas tudo bem.

O que vão ler de seguida pode advir de uma tendência para o cinismo ou para o pragmatismo deste crítico cuja opinião escolheram ler. Tive de desistir do filme quando, no meio de tanto malabarismo com conceitos grandiosos de áreas exactas como a física e a matemática, sobe ao palco central… o amor. A filha do professor Brand só quer saber de uma das expedições pioneiras, a de Edmunds, porque o ama, declamando um longo discurso em sua defesa, com um palavreado ranhoso que só confirma a suspeita de Cooper e do espectador mais racional: estas pessoas não têm a mínima noção da importância do que estão a fazer. Qual amor? Murphy não gosta do pai. Ele nem se lembra da esposa. O filho acaba esquecido. Brand não vive a sua paixão.

A ironia suga Interstellar para um buraco negro na argumentação. Como apoiar personagens que comprometem com tanta gravidade o seu propósito? O pior é que a melhor decisão seria precisamente ir primeiro ter com Edmunds, por ter transmitido os melhores dados. Que trapalhada. A viagem acaba com um “obrigado e podes ir para o caralho, que eu sou uma celebridade e quero morrer em paz com a parte da família que não me abandonou”. Tem etapas únicas, sim. O custo é uma seriedade desmedida e imprecisa. Nolan tenta ser Kubrick, quando lhe falta a respectiva objectividade. Tenta ser Tarkovsky, quando não compreende a dimensão do humanismo deste. Mais valia filmar em nome da acção sem compromissos.

4/10

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