Alan Clarke foi um realizador britânico que morreu em 1990 com um décimo do reconhecimento que merecia. Autor de alguns dos mais realistas e negros filmes sobre a sociedade de que fazia parte, dirigiu com fabulosa eficácia atores como Gary Oldman, Tim Roth ou Ray Winstone muito no início das suas carreiras. Apesar de contar com uma filmografia relativamente curta e intimamente ligada à BBC, o tratamento, duração e relevância de Scum, Made In Britain ou The Firm tornam Clarke numa entidade à parte.
A trabalhar maioritariamente em televisão por escolha, dada a facilidade de financiamento e a disponibilidade de meios na altura, o seu estilo minimalista apuradíssimo e a forma neutra e sagaz como abordava as questões que o preocupavam certamente lhe teriam granjeado uma duradoura e desafiante carreira no cinema, o que poderia ter garantido também um menor esquecimento e uma maior divulgação dos seus trabalhos. Seja como for, Elephant existe e deve ser visto custe o que custar, tanto em termos de dificuldade de o encontrar como em termos de dificuldade de o visionar.
Retrato de uma Irlanda do Norte desoladora, Elephant representa uma série de 18 assassinatos perpetrados sabe-se lá por quê, sabe-se lá por quem. Efetivamente, as explicações dadas para o que estamos a ver são inexistentes e, à medida que seguimos dezenas de pessoas aparentemente normais em tarefas banais e ambientes quotidianos, é até difícil dizer, em alguns casos, quem está prestes a ser vítima e quem está prestes a tornar-se num homicida. Estas incertezas são desconcertantes e denunciam com uma urgência deprimente a cultura de terror que existia num país em constante guerra consigo mesmo.
Clarke explora não só a proliferação da violência mas também a dessensibilização à violência. Expondo-nos durante 39 minutos a uma sufocante sucessão de atos inomináveis, o realizador simula brilhantemente o mais perigoso mecanismo de defesa humano: a vulgarização do problema. As mortes brutais perdem naturalmente, por repetitivas, o efeito de choque inicial e o espectador é levado, primeiro, a condenar uma chacina aleatória e, segundo, a aceitar a continuação do que está a ver, sendo que aceitá-lo realmente é tornarmo-nos coniventes. Num cenário onde, ao longo de cerca de 30 anos, conflitos étnico-políticos geraram 3254 vítimas mortais, talvez esta intenção pareça mais justificável e eye-opening.
Se tematicamente esta curta-metragem simples é infinitamente fascinante, não é também de descurar o aspeto técnico. Filmada na sua totalidade com Steadicam (16mm) e composta quase em exclusivo por longos tracking shots, Clarke realça a frieza dos criminosos e dos locais, os silêncios e os cinzentos, o antes e o depois de cada morte, incitando-nos a fazer perguntas, não oferecendo respostas, apenas os factos.
Serve como atestado da visão deste filme a sua influência em Gus Van Sant e no controverso trabalho que realizou em 2003 sobre o massacre de Columbine, que lhe garantiu a Palma de Ouro em Cannes e que partilha o título Elephant, numa referência à expressão inglesa "the elephant in our living room", ou seja, por vezes há verdades óbvias que ignoramos voluntariamente. É a mensagem que Alan Clarke, com o realismo e o distanciamento que lhe são característicos, quer passar: não nos podemos educar a viver com o que está mal à nossa volta.
9/10