quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Elephant (Alan Clarke, 1989)

Alan Clarke foi um realizador britânico que morreu em 1990 com um décimo do reconhecimento que merecia. Autor de alguns dos mais realistas e negros filmes sobre a sociedade de que fazia parte, dirigiu com fabulosa eficácia atores como Gary Oldman, Tim Roth ou Ray Winstone muito no início das suas carreiras. Apesar de contar com uma filmografia relativamente curta e intimamente ligada à BBC, o tratamento, duração e relevância de Scum, Made In Britain ou The Firm tornam Clarke numa entidade à parte.

A trabalhar maioritariamente em televisão por escolha, dada a facilidade de financiamento e a disponibilidade de meios na altura, o seu estilo minimalista apuradíssimo e a forma neutra e sagaz como abordava as questões que o preocupavam certamente lhe teriam granjeado uma duradoura e desafiante carreira no cinema, o que poderia ter garantido também um menor esquecimento e uma maior divulgação dos seus trabalhos. Seja como for, Elephant existe e deve ser visto custe o que custar, tanto em termos de dificuldade de o encontrar como em termos de dificuldade de o visionar.

Retrato de uma Irlanda do Norte desoladora, Elephant representa uma série de 18 assassinatos perpetrados sabe-se lá por quê, sabe-se lá por quem. Efetivamente, as explicações dadas para o que estamos a ver são inexistentes e, à medida que seguimos dezenas de pessoas aparentemente normais em tarefas banais e ambientes quotidianos, é até difícil dizer, em alguns casos, quem está prestes a ser vítima e quem está prestes a tornar-se num homicida. Estas incertezas são desconcertantes e denunciam com uma urgência deprimente a cultura de terror que existia num país em constante guerra consigo mesmo.

Clarke explora não só a proliferação da violência mas também a dessensibilização à violência. Expondo-nos durante 39 minutos a uma sufocante sucessão de atos inomináveis, o realizador simula brilhantemente o mais perigoso mecanismo de defesa humano: a vulgarização do problema. As mortes brutais perdem naturalmente, por repetitivas, o efeito de choque inicial e o espectador é levado, primeiro, a condenar uma chacina aleatória e, segundo, a aceitar a continuação do que está a ver, sendo que aceitá-lo realmente é tornarmo-nos coniventes. Num cenário onde, ao longo de cerca de 30 anos, conflitos étnico-políticos geraram 3254 vítimas mortais, talvez esta intenção pareça mais justificável e eye-opening.

Se tematicamente esta curta-metragem simples é infinitamente fascinante, não é também de descurar o aspeto técnico. Filmada na sua totalidade com Steadicam (16mm) e composta quase em exclusivo por longos tracking shots, Clarke realça a frieza dos criminosos e dos locais, os silêncios e os cinzentos, o antes e o depois de cada morte, incitando-nos a fazer perguntas, não oferecendo respostas, apenas os factos.

Serve como atestado da visão deste filme a sua influência em Gus Van Sant e no controverso trabalho que realizou em 2003 sobre o massacre de Columbine, que lhe garantiu a Palma de Ouro em Cannes e que partilha o título Elephant, numa referência à expressão inglesa "the elephant in our living room", ou seja, por vezes há verdades óbvias que ignoramos voluntariamente. É a mensagem que Alan Clarke, com o realismo e o distanciamento que lhe são característicos, quer passar: não nos podemos educar a viver com o que está mal à nossa volta.

9/10

domingo, 27 de novembro de 2011

TRAILERS: Don't Bother To Knock (Roy Ward Baker, 1952)

Suspense fires the screen! Richard Widmark as the guy who didn't bother to knock! Marilyn Monroe as the girl who didn't care! Como resistir?!

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Saw (James Wan, 2004)

Depois de uma década demarcada por um aumento da explicitação da violência no ecrã e pela especialização no género de vários realizadores americanos e europeus, os thrillers aparecem nos anos 90 com nova bagagem. Filmes como The Silence Of The Lambs ou Seven tomam o cinema de assalto, caracterizados por grande carga psicológica e sentido estético, impondo-se como arquétipos nos tempos vindouros. Ainda hoje vemos uma constante sucessão de cópias dos trabalhos de Jonathan Demme ou David Fincher, que, com maior ou menor sucesso artístico, maior ou menor sucesso financeiro, continuam, no mínimo, a ser consideradas modernas.

Saw insere-se neste panorama a uma infinidade de níveis. Jigsaw, um serial killer com muito tempo nas suas mãos, constrói puzzles macabros que deixam a polícia perplexa e se destinam a ensinar as suas vítimas a apreciar a vida. O filme escolhe não explorar a personagem do assassino e focar-se nos outros 2 tipos de intervenientes, começando com um fotógrafo e um médico a acordar presos com correntes pelo tornozelo numa casa de banho decadente sem saber como lá chegaram ou o que estão lá a fazer. Através duma enormidade de flashbacks, a história vai-se adensando e vão aparecendo respostas pertinentes, ainda que nem sempre lógicas.

Há, aliás, muito pouco que faça sentido no argumento deste filme, o que fere constantemente a sua credibilidade, desde os frágeis motivos que explicam o ethos de Jigsaw, passando pela conduta dos seus mais recentes prisioneiros, Adam e Lawrence, até pormenores irrealistas como um civil ser autorizado a assistir a um interrogatório policial, quase como se o horror e a criatividade dos actos de tortura operados nas cenas mais intensas pudessem por si só ser suficientes para o salvar, saciado que estará o eventual desejo sórdido de sangue do espectador. A violência não aparece num contexto, o contexto é criado artificialmente para tentar justificar a violência.

Não se pode negar que há mão firme na realização, ainda que James Wan não consiga oferecer um cunho verdadeiramente pessoal ao visual visceral e de um realismo austero de Seven. Copia o processo bleach bypass de revelação da película, ou seja, dispensando parcial ou totalmente o banho branqueador para aumentar a saturação da imagem, e vai longe demais com a montagem ultra-vitaminada, mas consegue criar um ambiente claustrofóbico eficaz. Já os actores, deixam muito a desejar, com reacções exageradas mas sem força por todo o lado. Tobin Bell tem muito pouco que fazer no papel de Jigsaw e a justificação para isso é talvez a menor de todas as razões pelas quais o final é frustrante.

O papel central acaba por ser mesmo das armadilhas, afinal é apenas disso que toda a gente fica a falar, de como este ou aquele se lixa e com o quê. O filme exige constantemente uma reacção e é difícil não nos rendermos, nem que seja já quase a acabar, quando Lawrence atinge uma catarse e toma medidas extremas para escapar ao cativeiro e à morte, porque consegue ser muito intenso, ainda que nem sempre de forma equilibrada, mas a sua terrível construção destrói-o e torna a violência apenas exploratória, parece um guarda-redes a tentar fintar sem sucesso um ponta-de-lança e a sofrer um golo como consequência. Pelos vistos, há quem aplauda isso.

3/10

domingo, 20 de novembro de 2011

TOP5: Federico Fellini

05. The White Sheik (1952)
O segundo filme de Fellini é também um dos mais jocosos, a vazar uma romântica inocência, num olhar simples à conturbada lua-de-mel de um casal muito diferente que encontra se encontra no fim.

04. City Of Women (1980)
Completamente diferente do anterior, uma viagem louca e sem fronteiras pelo sub-consciente de Fellini, talvez o seu filme mais delirante e derivativo, mas com um charme e uma criatividade e um Mastroianni únicos. Ah, e enormes seios!

03. La Dolce Vita (1960)
Provavelmente o filme mais conhecido e reconhecível de Fellini, sem dúvida um marco do cinema europeu, cheio de sequências brilhantemente orquestradas e uma fotografia a preto e branco impecável. A cena da fonte Trevi nunca será esquecida. Muitos serão surpreendidos pelo aparente corte narrativo a meio do filme, que surge de forma repentina para mostrar mais facetas da vida de Marcello.

02. I Vitelloni (1953)
Cómico mas acima de tudo nostálgico. Nostálgico por um passado mais inocente, por um passado mais despreocupado, pela juventude que passa tão rápido que por vezes nos interrogamos sobre se a teremos aproveitado correctamente e completamente. Notável a rápida sucessão de curtos planos-sequência final, a que Martin Scorsese se refere com particular admiração no documentário "My Voyage In Italy".

01. 8 1/2 (1963)
Perfetto.

sábado, 19 de novembro de 2011

POSTERS: Downhill Racer (Michael Ritchie, 1969)

Downhill Racer não é, nem de longe nem de perto, dos filmes mais conhecidos de Robert Redford ou de Gene Hackman, mas sempre achei o poster original fascinante, dum romantismo gelado e enigmático. Que acham?

terça-feira, 15 de novembro de 2011

TCN Blog Awards 2011

O Pai Natal veio mais cedo para estes lados, com uma bela prenda virtual: O Narrador Subjectivo tem uma nomeação para os TCN Blog Awards 2011! Um muito obrigado a todos os meus leitores, a todos os meus seguidores e a todos os votantes que perderam a cabeça e me levaram à lista de nomeados para Melhor Novo Blog! As votações para decidir os vencedores nesta e nas outras categorias estão abertas a todos no Cinema Notebook até dia 31 de Dezembro. A cerimónia de entrega dos prémios será no Teatro Turim, em Lisboa, no dia 7 de Janeiro. Faço então um convite para votarem e outro para aparecerem. Boa sorte a todos!

Secrets & Lies (Mike Leigh, 1996)

Ninguém carrega a influência do kitcken sink drama melhor que Mike Leigh, movimento cultural tipicamente britânico do século passado que se concentrava em explorar a realidade social, como se replicá-la nas artes realçasse as questões mais pertinentes, os conflitos mais usuais ou os fenómenos mais positivos do dia-a-dia. No cinema, em This Sporting Life, Georgy Girl ou Kes, entre outros, homens e mulheres comuns revelam vidas comuns, enfrentam problemas comuns, e somos imediatamente levados a reconhecermo-nos, a envolvermo-nos. Mike Leigh domina esta arte. A sua grande preocupação neste filme é evidenciada logo pelo título: segredos e mentiras, daquele tipo que guardamos até da nossa família, com os quais vivemos sem deles falar, e que, mais cedo ou mais tarde, explodem na nossa cara como granadas vindas do nada.

Desaparecida que está a sua família adoptiva, Hortense força-se a encontrar a sua mãe biológica. Sem filhos e num casamento algo estagnado, o fotógrafo Maurice concentra-se no trabalho. Volúvel e pouco sociável, Monica passa os dias em casa a melindrar a filha com todo o carinho possível. Cedo se percebe que estas personagens são todas frutos da mesma árvore genealógica, por muito perto ou longe que estejam física e emocionalmente. Os conflitos são inevitáveis, mas lidados com o máximo de compaixão e neutralidade possível por Leigh, porque tudo isto é quotidiano e cada um é livre de ter a sua abordagem. Há sempre quem se ria e quem chore em alturas de aperto. Parece mais que estamos a olhar para a rua da janela da nossa sala do que sentados no escuro a ver um filme.

Claro que este tipo de filmes é um gosto adquirido. São perfeitamente acessíveis e despretensiosos, mas com pouco replay value. Banal tecnicamente e superficialmente desnorteado, Secret & Lies conta com dezenas de minutos de actividades sem interesse do dia-a-dia filmadas com impassibilidade, diálogos improvisados ou cenas que pouco contribuem para o esboço de narrativa que parece estar traçado. É um facto que é este tipo de iniciativas do realizador que mais contribuem para criar um espírito humanista envolvente, às vezes de forma imperceptível, como a cena em que o antigo dono da loja de Maurice lhe vai pedir emprego, onde a contenção de Timothy Spall é comovedora, mas isso pode não ser suficiente para quem aprecia cinema mais elaborado e intencionado.

Quando chegamos ao fim e tudo vem ao de cima, sentimo-nos aliviados, porque a forma como Leigh nos vai direcionando para mais e mais perto destas pessoas aos poucos e poucos faz-nos sentir que pertencemos a esta família, vemos e sabemos tudo, como vivem, quem são e como foram; partilhamos os seus segredos e mentiras. Os actores estão completamente absorvidos pelas suas personagens, todas as suas subtilezas e contradições, com especial destaque para Marianne Jean-Baptiste, que toca ainda mais por ser tão honesta e saber muito menos até que o espectador. Quando ela ganha coragem para perguntar a Monica sobre o seu pai e recebe histeria como resposta, é tão triste. Tão triste. Em termos de realismo e ressonância, Secrets & Lies é irrepreensível e obrigatório. Essa é que é a verdade.

7/10

terça-feira, 1 de novembro de 2011