sexta-feira, 29 de maio de 2015

The Goonies (Richard Donner, 1985)

The Goonies é um daqueles clássicos que marcou quem nasceu ou cresceu nos anos 80. Nessa altura, Spielberg continuava a sua ascensão a rei e senhor de Hollywood com um entusiasmo contagiante, adoptando os jovens como o seu público-alvo e promovendo filmes de aventuras criativos, independentemente do género, desde que tivessem uma voz contemporânea e fossem facilmente relacionáveis. Hoje chega a ser difícil dizer qual é maior, se a vida nos subúrbios americanos enquanto base da necessidade dos autóctones por histórias improváveis como esta, se a marca destas imagens de bairros de casas repletos de miúdos com bicicletas, walkmans e ténis Converse na percepção da própria cultura americana pelo resto do mundo.

Assim ganhou o seu lugar na história do cinema este grupo de amigos, tão diferentes e tão unidos que é practicamente impossível, para quem teve uma infância pré-novas tecnologias, não rever em Mikey, Chunk, Mouth ou Data um avatar de si próprio. Também podia dizer pré-politicamente correcto, porque a razão de já haver aqui um certo anacronismo não é apenas a liberdade que as personagens principais têm (sem os jogos elaborados das consolas inventam as suas brincadeiras, sem os estímulos visuais dos tablets ficam menos tempo em casa e sem as radiações dos telemóveis têm menos controlo parental), mas ainda das pedagogias modernas que endeusam as crianças e certamente apelidariam o “truffle shuffle” de bullying ou censurariam todos os palavrões que se fazem ouvir.

Nem vale a pena ponderar no que seria The Goonies se fosse feito agora, apreciemos antes o que continua a ser, isto é, uma caça ao tesouro cheia de humor, grandes personagens e cenas memoráveis. Os Walsh, como outas famílias em Astoria, vão ceder à pressão do imobiliário e vender a sua propriedade para nesse lugar nascer um campo de golfe. Apenas um milagre pode salvar a vizinhança da ganância, a amizade do capitalismo. No sótão da casa, Mikey e companhia encontram um mapa com 500 anos dum pirata chamado One-Eyed Willy que se terá refugiado na região com o seu espólio, tendo provavelmente morto a sua tripulação para não ser vítima de invejas e traições. Em simultâneo, Jake Fratelli fugiu da prisão e escondeu-se com a mãe, o irmão e uma criatura por identificar num restaurante abandonado perto do mar.

As peripécias sucedem-se, especialmente quando o grupo entra à socapa nesse estabelecimento e descobre uma passagem secreta para um sistema de grutas. Cada um deles desempenha um papel fundamental na tentativa de ultrapassar as armadilhas que, deduzem, One-Eyed Willy terá montado para afastar os curiosos. Contudo, a ideia de um tesouro que podem usar para não terem de vender as suas casas alimenta-lhes a perseverança, para além de, a partir de certo ponto, não poderem voltar atrás por os Fratelli se inteirarem da lenda local. Destaco Robert Davi e a variação cómica dos papéis de mau da fita que sempre desempenhou, algo que Joe Pesci viria a imitar com sucesso em Home Alone. Ver The Goonies continua a ser diversão garantida, para além de uma viagem a tempos mais simples.

8/10

sábado, 16 de maio de 2015

E.T. The Extra-Terrestrial (Steven Spielberg, 1982)

Quando penso no meio em que cresci e nas pessoas que me rodearam, fico espantado por dedicar tanto tempo e atenção a uma área predominantemente artística como o cinema. Sempre fui encorajado a brincar com microscópios, a fazer construções em Lego e a ler sobre o cosmos, para além da razoável inclinação familiar, se a genética tiver algo a ver com o assunto, para a saúde, a engenharia, entre outras. O destino reservar-me-ia um futuro profissional nessa onda, no entanto, o fascínio pelo grande ecrã nunca amainou.

Suponho que, como quase tudo, foi mais um gosto adquirido, pois tive o mesmo acesso que milhares de outras crianças minhas contemporâneas. A prova é que os momentos que me marcaram a este nível tiveram uma origem perfeitamente vulgar: ir à Trindade ver The Lion King com os colegas da escola primária e ficar de boca aberta com a introdução, encontrar um VHS do Platoon aos 13 anos e constatar que havia outros horizontes além das animações Disney ou ver na RTP2 documentários do Martin Scorsese na adolescência.

Contudo, o filme ao qual tive maior exposição na infância foi, sem dúvida, E.T. The Extra-Terrestrial. Não me lembro a partir de que Natal começou a tradição, mas nessa época era obrigatório passar na televisão e eu nunca o perdia. A repetição reconforta os mais novos, o que pode explicar, parcialmente, porque me sentava no sofá todos os meses de Dezembro para apanhar a mesma história, uma e outra vez. Parcialmente, porque já nessa altura sentia que a experiência era diferente e melhorava à segunda, à terceira, e por aí fora.

Ao rever esta pérola de Steven Spielberg que deixou uma marca indelével na cultura dos anos 1980, algo que não fazia há uma década, no mínimo, fiquei com a certeza de que o tempo só fortalece o seu impacto e, por isso, a torna imortal. A imaginação tem liberdade total na inocência da meninice e poucas ideias são capazes de a estimular como a possibilidade de atravessar a fronteira da atmosfera e viajar pelo espaço ou entrar em contacto com seres que façam o caminho inverso e aterrem perto de nós, especialmente um da nossa idade.

Em adulto assome a memória dessa visão simples e sonhadora de outrora, todavia a maior injustiça que se poderia cometer com E.T. The Extra-Terrestrial seria dizer que a nostalgia é o seu atributo principal. Quando o pequeno alien é deixado para trás, por necessidade, na sequência puramente visual de abertura, o trauma do abandono num sítio estranho e a vontade de encontrar uma solução que passa a acompanhar as personagens e os espectadores daí para a frente são primitivas e impossíveis de contrariar.

Perto da clareira onde isso acontece mora Elliott (Henry Thomas), irmão mais novo de Michael e mais velho de Gertie (Drew Barrymore). O encontro inevitável gera, antes, medo, e, depois, fascínio. Como a comida conquista qualquer um, o rapaz deduz que uns M&M’s são um bom chamariz para a criatura que pensa ser um gnomo. De repente, já estão os dois no quarto de Elliott e começa a estabelecer-se um laço único e inexplicável. Michael e Gertie passarão a carregar o segredo, que é vital esconder dos “grandes”.

Ambos são importantes no desenrolar dos acontecimentos. O primeiro assume uma operação de busca e outra de resgate quando é exigido e a segunda ensina o inglês, da mesma forma que o ensinam a ela, para além de ser adorável (ninguém diria que ia sair daqui um dos anjos de Charlie). A ligação com Elliott, essa é irreplicável - partilham sentimentos e comportamentos. Ao princípio parece engraçado, quando um se assusta o outro também, estejam próximos ou não. Mais tarde, os seus estados de saúde deterioram-se em simultâneo.

Um detalhe cuja percepção se amplia imenso quando se tem outra maturidade é o efeito nocivo que a nossa atmosfera rica em azoto e oxigénio tem no extraterrestre. O funcionamento exacto do seu organismo e, em específico, do seu sistema respiratório é desconhecido. Apesar disso, ele dá-se bem dentro de água, está em sintonia com a fotossíntese das flores espalhadas por casa e a sua espécie tem um interesse claro pela botânica no início. O realizador chegou a admitir que o argumento original explicava que E.T. é uma planta.

Outro tópico que tem gerado vários rumores prende-se com as constantes referências a Star Wars. Vemos brinquedos das naves e um disfarce de Yoda no dia de Halloween, que o nosso amigo doutro planeta reconhece imediatamente. Isto, a juntar à sua capacidade de levitar bicicletas à luz do luar com o poder da mente, como na imagem mais mítica associada ao filme, semeiam a dúvida sobre se estará a usar a Força e se será um Jedi. A sua raça está representada no Senado da “space opera” concebida por George Lucas.

O que Spielberg se esforça por transmitir é a noção de procura por um lar. Essa luta revela-se universal, não só no contexto intergaláctico da história, mas, na verdade, está inerente à condição humana associarmo-nos, reproduzirmo-nos, partilhar-mos a vida com outros, precisamente crescermos num determinado meio e com determinadas pessoas ao nosso redor. Elliot e E.T. têm isso em comum, por via de uma família despedaçada com pai ausente e por via de uma separação forçada. No fundo, ambos gostariam de voltar a casa.

Talvez por isso, quando, depois de tantas peripécias, depois de morrer e ressuscitar (a incredulidade total directa de Ordet), depois de uma fuga ao governo polvilhada com puro engenho cinemático, finalmente se encontra na entrada da sua nave para regressar, o protagonista alien lance ao protagonista terráqueo um “come” sincero. A resposta é um desarmante “stay”. Chegou ao fim a aventura. Acho que não há outra cena nos anais do cinema que me emocione mais do que esta, tão simples e tão mágica que é.

A porta fecha-se rodeando o coração do E.T., que brilha no peito. No céu fica um rasto colorido igual a um arco-íris. O mais genial tema de John Williams entoa nas colunas e ecoa na alma. O Spielberg historiador é bom, mas o fantasista é melhor. Suponho que, independentemente das aptidões ou oportunidades, seja por isto que os filmes se tornaram importantes para mim: a possibilidade de pôr de lado as dúvidas e as certezas da realidade para ceder à mais pura e intangível utopia. E.T. The Extra-Terrestrial é a essência do cinema.

10/10

domingo, 3 de maio de 2015

Dark Passage (Delmer Daves, 1947)

Dark Passage é comummente lembrado por ser a terceira das quatro ocasiões em que Humphrey Bogart e Lauren Bacall, cuja química no ecrã se traduziu num casamento na vida real, contracenaram juntos e também por ter sido filmado na primeira pessoa durante quase 40 minutos, uma decisão técnica que ainda hoje é rara, quanto mais ser central à acção durante tanto tempo. Mais do que uma extravagância, esse mecanismo envolve o espectador na fuga da personagem principal da prisão, para além de esconder a sua cara.

Não é que a voz de Bogart seja difícil de identificar, mas aí reside o busílis da questão, o condenado Vincent Parry apenas adquire o aspecto do mítico actor da Hollywood clássica depois de uma cirurgia plástica destinada a ocultar a sua identidade e permitir que não seja apanhado facilmente. O suspense anda à volta do rosto original, que vemos de relance nas capas de jornais, e não do rosto que é revelado quando as ligaduras são retiradas. Acusações falsas, antigas e novas, de homicídio perseguem-no.

Assim dito por alto parece uma história com detalhes criativos. Olhando de mais perto, os acasos que se sucedem geram muita incredulidade. Num film-noir é expectável que o destino suplante as vontades das personagens e mude repentinamente a direcção que seguiam. Não obstante, pedir que se aceite como normal que Irene Jansen (Bacall) surja na estrada pronta para dar boleia a Parry exactamente quando este escapa de San Quentin porque estava a pintar nas proximidades, faz torcer o nariz.

Pior ainda quando o acusado apanha um táxi horas depois e o taxista mete conversa, deduz o que se passa e recomenda, sem exigir qualquer recompensa, o médico que fará a operação clandestinamente e com inefável competência. Sem querer ser demasiado específico, também é uma desilusão que um filme que tanto promete, com o casal mais magnético de sempre e truques de câmara inovadores, se possa resumir com o meme da overly attached girlfriend, afinal a causa de tanta injustiça.

Seria interessante haver tensão relativamente à veracidade ou falta dela nos argumentos utilizados para atribuir a Parry o estatuto de criminoso perigoso. Irene declara que sempre acreditou na sua inocência e somos obrigados a pensar o mesmo. Concluindo, Delmer Daves assina uma obra inconsistente que, por cada plano exterior maravilhoso de San Francisco, tem um buraco no argumento. Não é demérito seu nem dos actores, mas Dark Passage é um underachiever.

6/10