segunda-feira, 1 de maio de 2017

Novo Projeto

O tempo não para e este blogue existe há quase 6 anos. À pala desta experiência estive em vários eventos, ganhei alguns brindes e conheci gente espetacular.

Mas a verdade é que os blogues foram engolidos pela proximidade, a partilha, os likes e o imediatismo das redes sociais - algo que não considero negativo e que me leva a adaptar e a iniciar um projeto diferente.

Assim, a todos os que foram lendo o blogue, convido-vos agora a seguir a conta @tarkovskywannabe no Instagram, onde vou passar em revista a minha crescente coleção de DVDs, filme a filme. 

Online vão ficar as 213 críticas que aqui fui depositando e todos as restantes publicações.

Obrigado.

domingo, 30 de abril de 2017

Mother And Son (Aleksandr Sokurov, 1997)

Mother And Son é um filme que, pela estética naturalista, pelo ritmo moroso e pelas passagens filosóficas sobre a condição humana, pouco oferece que possa rebater as frequentes comparações que se fazem entre Sokurov e Tarkovsky. É verdade que Sokurov já abordou, na sua longa filmografia, vários temas e já alterou a sua execução vezes suficientes para poder ser considerado um original e reputado autor por mérito próprio, mas há a noção de que, espaçadamente, presta vassalagem ao seu mestre de formas mais ou menos óbvias. Bem, quando a qualidade do trabalho acaba por ser tão elevada como é em Russian Ark (em que Sokurov eleva ao paroxismo as ideias de Tarkovsky sobre o controlo da passagem do tempo e da transição entre espaços abusando do plano-sequência num filme sem cortes, dentro de um museu em que cada sala nos remete para um período diferente da história da Rússia) ou como é neste Mother And Son só se pode mesmo louvar as suas tentativas.

Como ponto de partida, temos um filho a cuidar da sua mãe moribunda numa casa de campo perdida algures numa paisagem bucólica e húmida. Vemos que o seu dia-a-dia se resume a passeios longos pela floresta que os rodeia, a sestas constantes, a ver o tempo passar com uma lassidão com o seu quê de nostálgica, a recordar o passado e à espera do fim, da morte da mãe. O filme não pretende propriamente chegar a lado nenhum, apenas transmitir um sentimento do mais profundo e silencioso pesar, dor pela perda que se aproxima, e é difícil não ser contagiado por essa espécie de miasma, pela forma tão etérea com que explora a mortalidade. É na construção dessa atmosfera e de imagens extremamente delicadas que vemos quem é a grande referência de Sokurov.

Talvez se possa dizer que é um filme mais negro que os de Tarkovsky. Sim, aqui não há grandes dúvidas quanto ao destino ou quanto à sanidade das personagens como em Offret, não há o fascínio pelos atos que transcendem a nossa natureza e escapam a qualquer explicação, como aquela espécie de telepatia no fim de Stalker e a que vulgarmente classificamos como milagres, não, aqui há claustrofobia, há remorsos, há morte, mas tudo isso é pura poesia, a morte é assustadora, mas é tão merecedora dos mais belos filtros de câmara (usando vidro, espelhos e tinta, Sokurov altera, comprime as imagens em várias direções, como se a pressão da situação que a mãe e o filho estão a viver fosse tal que o próprio mundo que os rodeia é afetado) e dos mais belos enquadramentos possíveis, especialmente em atos inevitáveis de grande ternura. Por isso, Mother And Son é uma experiência arrebatadora. Assim, simples, evocativo e sem enredo. Por isso, Mother And Son é Tarkovsky. Mas, não sejamos injustos, é, acima de tudo, Sokurov.

9/10

Viridiana (Luis Buñuel, 1961)

Antes de chegar a Viridiana, Luis Buñuel tinha já ligado ao seu nome um considerável espólio de fitas veneradas pelos apreciadores de cinema, na sua maioria produzidas em França (antes da guerra civil espanhola e do seu exílio para os EUA) ou no México, como os delírios surrealistas que escreveu com Salvador Dalí e como as análises sociológicas de El e Los Olvidados. Viridiana marcou um regresso ao país de origem que foi mal recebido pelo poder local e o regime do ditador Francisco Franco chegaria mesmo a tentar bani-lo, por distorcer símbolos e imagens religiosas de maneiras consideradas indecentes.

A história começa com a freira do título (Silvia Pinal) a dias de prestar juramento, que é aconselhada pela sua superior a visitar o único parente que tem vivo antes de se dedicar à reclusão, um tio abastado que tem pago os estudos. A jovem obedece e em breve somos apresentados ao seu protetor. Dom Jaime (o inevitável Fernando Rey) vive obcecado com a sua falecida mulher, ao ponto de não se limitar a recordar memórias, mas a tentar revivê-las, mesmo que isso signifique experimentar o vestido de casamento dela em privado, por exemplo. Viridiana é igual à tia e ele fica embevecido, causando grade desconforto à rapariga, que apenas deseja mostrar alguma gratidão pelo apoio. Quando comete o erro de ceder à pressão e vestir o referido vestido, Dom Jaime droga-a e inventa que a terá violado enquanto ela estava inconsciente, para a demover do catolicismo. Contudo, o efeito é o contrário, apenas reforça a vontade da sobrinha em ir embora. Talvez por se sentir irremediavelmente só, talvez por se sentir mal com as suas atitudes, ele suicida-se. Isto tudo em meia hora.

Neste ponto talvez seja estranho pensar que ainda há o dobro do tempo até aos créditos finais. Na realidade inicia-se uma segunda parte que evidencia os temas em jogo. Viridiana herda a casa, habita-a juntamente com o filho bastardo de Dom Jaime e tenta usar a sua nova posição social para ajuntar pobres e lhes dar comida, teto e trabalho. Sente que causou a morte de um homem e procura expiação na caridade. Enquanto Jorge (Francisco Rabal), prático e realista, trata de reabilitar o património, ela fecha-se num mundo de ingenuidade. Apesar das suas ações dignas de um Nobel da Paz, ao oferecer resposta às necessidades básicas de indigentes, não os está a dotar de armas que podem usar para mudar a sua vida. Buñuel questiona se esta bondade passageira serve mais o propósito de camuflar os pecados do que contribuir para a sociedade. Entretanto, o primo também se sente atraído pela personagem principal. Julgamos que o filme se vai repetir, mas a postura é bastante diferente.

No último ato, Viridiana é confrontada com a superficialidade das suas crenças e ações via uma sucessão de ataques físicos cometidos por pessoas que beneficiaram da abnegação pela qual se estava a pautar. Jorge resolve a situação e torna-se evidente que afinal há mais semelhanças entre ela e Dom Jaime do que entre ele e Dom Jaime, dado que adotaram uma generosidade hipócrita para satisfazer uma visão egoísta e acabaram por ser vítimas de si próprios. Devemos compaixão a esta mulher, que, não obstante, merecia melhor sorte. Este círculo ingrato revela-lhe a verdadeira natureza humana e afasta-a da fé, o que parece trazer-lhe alguma calma. Há imenso simbolismo, numa cena vemos um crucifixo transformado em canivete, noutra os pobres assaltam a mansão e regalam-se com um banquete, assemelhando-se ao mural d'A Última Ceia, já para não falar da visita que a madre superior faz a meio, para perceber porque é que a sua subordinada não voltou para o convento, em que transborda uma condescendência retorcida. Realmente, não são as conclusões conservadoras que uma ditadura fascista puderia apoiar…

8/10

Death And Devil (Stephen Dowskin, 1974)

Imaginem um filme de Ingmar Bergman com apenas duas cenas dignas dessa designação, o triplo dos close-ups e uma banda sonora composta maioritariamente por passagens simples de piano repetidas a um ritmo funerário e o que mais parecem ser ecos de um sonar a espalharem-se pelo oceano. Stephen Dwoskin não é bem conhecido pelo público em geral, aliás é um nome obscuro – o que não é propriamente incompreensível, considerando experiências pouco convencionais como esta. A sua abordagem minimalista não só é extrema como tem o seu quê de frustrante, mesmo que seja bastante reveladora.

Death And Devil abre com uma montagem de longos minutos em que uma jovem, Lisiska, esboça uma multitude de expressões faciais para a câmara, divaga pela sua casa e prepara-se para sair, tudo filmado com uma proximidade quase intimidadora. Eventualmente, assistimos a uma conversa deprimente entre um homem e uma mulher mais velhos, cujos nomes são irrelevantes, sobre desejo, perceções e deceções. Segue-se o encontro de Lisiska com outra personagem masculina, com quem parece não ter nada para falar, e acabamos com dezenas de minutos de análises extensivas dos rostos dos atores. Só.

Quer dizer, obviamente que há uma grande carga emocional inerente. O estilo é radical, mas Dwoskin demonstra astúcia na interpretação da infelicidade das duas mulheres retratadas, muito diferentes entre si - uma bonita e despreocupada, outra com um ar pesado e pouca paciência para sentimentos ou sexo -, e é-o especialmente quando se permite a fazer uso às palavras. A grande diferença entre Lisiska e a outra senhora talvez seja que a primeira se conforma quando é mal interpretada e a segunda contradiz quem quer que seja, quando é necessário. Acima disso, está a forma como os homens veem o género feminino, como interpretam erradamente o seu comportamento e como contribuem para a distância que daí advém.

O filme passa-se todo na mesma casa, contudo as pessoas estão sempre longe umas das outras, inclusive quando dialogam raramente partilham o enquadramento. O trabalho de câmara é tão intrusivo e ansioso que cativa e perturba em igual quantidade. Não há tanto interesse em mostrar interação como em estabelecer intimidade. Objetivo conseguido, Death And Devil não é nada acessível, mas é sufocante. Imaginem ir ao teatro, serem puxados da audiência e colocados em palco a olhar diretamente para a cara de cada ator por meia hora até ao fim da peça. Seria, sem dúvida, original. Se isso é suficiente enquanto objeto artístico é que fica ao critério de quem se aventura a aderir.

5/10

Hunger (Steve McQueen, 2008)

Hunger é brutal, não só por nunca virar a cara à violência, inseparável da situação muito particular que recria, mas especialmente pela neutralidade e o rigor desarmantes com que foi filmado. O foco maior é apontado a Bobby Sands (Michael Fassbender), membro capturado do IRA, que instigou uma greve de fome em 1981 entre os seus companheiros de encarceramento, reclamando o direito ao estatuto de prisioneiros de guerra, exigência veementemente recusada pela então primeira-ministra do Reino Unido, Margaret Thatcher. Esta atitude resultaria na morte de dez deles, incluindo o próprio Sands, mas Hunger só chega a esta personagem meia hora depois de começar.

Antes, seguimos um guarda que se prepara para sair para o trabalho. Ele olha para debaixo do carro antes de o ligar. Aqui compreendemos que o terrorismo era uma realidade a que os irlandeses tiveram de se adaptar muito antes dos atentados que têm assolado o resto da Europa em anos recentes e que o medo encontra sempre poros por onde se infiltrar. Depois passamos para Davey, um novo inquilino, que é atirado para a ala dos não conformados por se recusar a usar o uniforme do estabelecimento. Seguindo-o, vamos sendo apresentados a um novo mundo, confinado por quatro paredes, no qual a dignidade humana não entra.

Na realidade, homens como Sands e Davey mataram inocentes e defenderam o assassinato em nome duma religião, contudo, ao partir daí para explorar as humilhações a que são sujeitos pelo Estado quando passam a estar à sua guarda, Hunger está mais interessado em desafiar as nossas ideias preconcebidas sobre crime e castigo. O estado é justo ou insensível? O tal guarda convive todos os dias com a ameaça que o IRA representa, mas, por um lado, não deixa de viver por causa disso, e, por outro, não deixa de contribuir para a espiral de violência ao agredir os prisioneiros da HM Prison Maze. Hoje temos Guantánamo, por exemplo.

Como manter a sanidade no meio deste ciclo sem fim? Sands é espancado regularmente, mas escolhe protestar da única forma que pode, em nome da sua causa. Certo ou errado, mártir ou criminoso, isso é secundário. Steve McQueen não quer que adoremos estes guerrilheiros nem que os vilifiquemos, antes que perguntemos a nós próprios quanto estaríamos dispostos a sacrificar por aquilo em que acreditamos. Sands foi uma criança como outra qualquer, que cresceu, fez escolhas e tomou um certo caminho, como ele explica a um padre, num plano estático de 17 minutos simplesmente inacreditável. Por isso é irrelevante ler cadastros, retratar julgamentos ou recriar circos mediáticos. o filme agiganta-se no minimalismo.

9/10

Killer's Kiss (Stanley Kubrick, 1955)

Aos 26 anos, Stanley Kubrick avançava para a sua segunda longa-metragem, ainda sem metade que fosse da fama que viria a alcançar e dos orçamentos de que viria a dispor. Como tal, Killer’s Kiss é uma obra menos polida, onde faltam ainda muitas das características técnicas que viriam a demarcar a filmografia deste realizador dos restantes colegas. Distancia-se já do amadorismo de Fear And Desire (a estreia que o próprio Kubrick repudiava ao ponto de ter tentado retirar de circulação) mas serve apenas como aperitivo para o prato maior que é The Killing.

Neste film-noir sobre um pugilista que se envolve com a vizinha dançarina, esta demasiado presa ao seu violento patrão, o que mais impressiona é a estrutura. Com uma facilidade impressionante, o filme avança por flashbacks dentro de um flashback mais abrangente sem nunca perder o fio à meada. Logo na cena inicial, o pugilista Davy Gordon (Jamie Smith) espera uma mulher na estação de comboios. Virá ter com ele? Recuamos para ver como tudo começa, voltamos a recuar para saber mais sobre o passado dela, mas só no fim poderemos ter a resposta à pergunta inicial.

Apesar de alguns momentos lentos e diálogos pouco convincentes, há cenas cativantes, nomeadamente quando o filme se torna mais visual. Destaco a perseguição em corrida por zonas industriais e tácitas de Nova Iorque, entre prédios abandonados e telhados altaneiros, até uma fábrica de manequins, onde os dois homens em disputa pela atenção de Gloria (Irene Kane) se digladiam até à morte de um deles. Tudo isto fica a anos-luz de A Clockwork Orange e restantes, mas se estivéssemos em 1955 poderíamos registar boas indicações, elementos transgressivos e a vontade de mostrar algo diferente.

Kubrick fez treze filmes na sua carreira. No documentário A Life In Pictures, realizado pelo irmão da sua última mulher, ouve-se alguém dizer que ele não tinha prazer em ser tão lento a trabalhar, simplesmente acontecia. Talvez por isso tenha concretizado alguns dos filmes mais rendilhados e rigorosos de sempre. Quem quiser completar a carreira de um dos nova-iorquinos mais famosos do cinema terá de passar por este Killer’s Kiss, de preferência sem grandes expectativas, mas também não será nenhum sacrifício, pelo contrário, é uma curiosidade com valor.

6/10

terça-feira, 25 de abril de 2017

Brick (Rian Johnson, 2005)

À primeira vista, Brick pode parecer só mais um drama de escola secundária, que é todo um subgénero do cinema americano, especialmente atraente para realizadores independentes, mas, lá está, as primeiras impressões costumam ser superficiais. A estreia de Rian Johnson é antes um film-noir disfarçado de drama de escola secundária. A história segue um adolescente que tenta perceber o paradeiro de uma ex-namorada, o que o arrasta para dentro de uma teia de tráfico de droga, estabelecida no meio dos colegas com que se cruza todos os dias, e para a companhia de outra rapariga, que pode ou não ter múltiplas intenções. Brendan (Joseph Gordon-Levitt) é como um detetive em alerta que, com o auxílio de um parceiro, tenta desvendar um mistério, um solitário que não receia levar pancada e tem sempre uma resposta pronta. Só faltam os cigarros que não se apagam e as rugas na testa para termos um Humphrey Bogart em The Big Sleep (Howard Hawks, 1946) ou The Maltese Falcon (John Huston, 1941).

Rian Johnson gere com calma a incerteza dos acontecimentos. Estamos a falar de uma mistela invulgar de géneros distantes e sem relação óbvia à partida, que aborda as descobertas da juventude de um ponto de vista diferente do habitual. O argumento vai apresentando personagens enigmáticas e novos desenvolvimentos, distorcendo lugares-comuns do ambiente escolar de formas criativas, como quando uma conversa muito tensa e elaborada é interrompida pela mãe de um dos intervenientes a oferecer refrescos aos rapazes de passagem por aquele lar.

A primeira imagem que temos é de Brendan a observar o corpo inanimado de uma loira numa vala. Os planos médios, secos e bem enquadrados, são evocativos. Gus Van Sant aprova de certeza, se vir Brick. À medida que vamos acompanhando a personagem principal na sua aventura, regressamos a um mundo fácil de associar a experiências típicas da vida pré-maioridade, desde as horas perdidas nas traseiras de pavilhões de aulas, às primeiras festas noturnas, passando pelas casas dos subúrbios; contudo, somos constantemente assaltados pela perceção cada vez mais acentuada de que algo está errado. Em breve, surgem chamadas anónimas intimidantes, brutamontes que partem para a agressão sem pré-aviso e raparigas irresistíveis, aprendizes de femme fatale, Ritas Hayworths em miniatura. Para além de manter uma atmosfera muito própria, com os seus tons pastel e a sua banda sonora feita a partir de copos a tilintar, Brick é bom entretenimento, um número original de malabarismo com a memória de tempos idos e o negrume de filmes de outros tempos.

8/10

domingo, 29 de janeiro de 2017

Silence (Martin Scorsese, 2016)

Martin Scorsese queria fazer um filme sobre Jesus desde que interiorizara que atrás de cada ida ao cinema existia a visão de um realizador a orquestrar o resultado final. Reza a lenda, que terá sido Barbara Hershey, a protagonista de Boxcar Bertha, a sua segunda longa-metragem, a apresentar-lhe o livro The Last Temptation Of Christ, de Nikos Kazantzakis, durante as gravações, antes ainda do sucesso de Mean Streets, Taxi Driver ou Raging Bull. Ambos colaborariam para o transpor das páginas para o grande ecrã em 1988, o que perfaz mais de uma década entre o início e o fim do projeto.

Depois temos o caso de Gangs Of New York. Supostamente, Scorsese questionara-se toda a vida sobre a Nova Iorque primitiva, sobre os primórdios da sua cidade natal, que na juventude lhe parecia esconder segredos de um passado diferente da realidade que conhecia, dos arranha-céus art deco, das comunidades europeias refugiadas nos seus bairros bem delimitados, das luzes da Broadway e de Times Square. Ao ler sobre as violentas rivalidades numa fase de crescimento abrupto, em especial com a vaga de irlandeses que fugiam da fome, começou a compor um épico que apenas viu a luz do dia em 2002.

Isto tudo para ilustrar que o realizador não é estrangeiro nenhum a ideias que demoram anos e anos a materializar-se. É esta ambição e paixão que fazem de Scorsese um iconoclasta movido por uma vontade indomável de fazer mais e melhor, com a devida vénia aos inovadores que no passado fizeram o mesmo. Assim, 28 anos após um arcebispo de Nova Iorque lhe ter entregado uma cópia do livro Silence, de Shusaku Endo, a intenção de o adaptar materializa-se finalmente, numa era de paralelismos evidentes em relação ao Japão do séc. XVII retratado. Talvez seja o destino, para quem acredita nisso.

Acreditar é um conceito omnipresente nos filmes de Scorsese. Acreditar nas relações – Alice Doesn’t Live Here Anymore. Acreditar em nós próprios – Raging Bull. Acreditar na família – Goodfellas. Acreditar no dinheiro – The Wolf Of Wall Street. Normalmente o foco cai na incapacidade de confiar e nas incertezas que isso gera, ou na fé cega e nas traições que daí advêm. Silence insere-se na categoria da crença numa religião, como The Last Temptation Of Christ e Kundun, dois projetos extremamente pessoais, cuja aceitação popular foi marginal ou pouco expressiva.

Logo à partida, são exemplos de distanciamento das convenções narrativas de que a generalidade dos filmes depende para criar conflitos e definir personagens. Jesus a caminho da crucificação, o Dalai Lama ameaçado pelo comunismo e, agora, estes padres portugueses num país que acaba de banir o cristianismo, deambulam à procura de respostas, por realidades adversas, carregando o peso crescente das suas dúvidas, realçado pela narração, que segura todos os pedaços, numa cadência hipnotizante. Depois, apontam o foco à introspeção, num apelo à humildade (por acaso, um valor jesuíta intemporal).

No entanto, não é descabido dizer que, com a expansão da fé motivada pela globalização marítima, a igreja assumira arrogantemente que merecia destaque universal, até encontrar fortes obstáculos políticos. Quando Rodrigues (Andrew Garfield) sai de Macau com Garupe (Adam Driver), tem de andar clandestinamente atrás de Ferreira (Liam Neeson), o mestre que os introduziu na ordem, sendo incerto se o encontrarão vivo, morto ou apostático. Qual Apocalypse Now eclesiástico, o caminho até à verdade, sobre o destino do conterrâneo e sobre os limites da doutrina em que se alicerçaram, revela-se confuso, penoso e surpreendente.

Nas aldeias por onde passam contactam com populações reprimidas não por falharem no pagamento dos impostos, por se desleixarem no trabalho ou por cometerem crimes, mas simplesmente por acreditarem em algo, algo que dá significado às suas pobres vidas e a que não renunciam. A questão que mais à frente surge é se se sacrificam pelos ideais do cristianismo ou se o fazem pela família, pelos amigos e pelos padres. Serão o paraíso e a ressurreição conceitos demasiado transcendentes numa civilização terrena e prática como a japonesa? Nesse caso, as clivagens culturais talvez sejam insanáveis.

Cabe a Rodrigues estabelecer a distinção. Tudo e todos testarão as suas convicções, desde a violência que testemunha, passando pela forma superficial como os locais encaram a confissão, às interjeições do inquisidor de Nagasaki (Issei Ogata), um antagonista com a perfídia de Hans Landa em Inglourious Basterds e, para desespero da personagem principal, com uma noção superior do status quo contemporâneo. Não deixa de ser um confronto entre a ingenuidade de um jovem e a objetividade de um sábio. A mestria de Silence está em transformar a frustração previsível numa experiência enriquecedora.

O cinema de Scorsese está repleto de homens solitários de Deus e de dilemas morais. Longe das ruas de Nova Iorque e alinhada com a maturidade de um septuagenário, é possível argumentar que esta é das manifestações mais puras desses temas recorrentes. Só não é a definitiva porque Garfield não é De Niro ou DiCaprio, nem Driver é Keitel ou Pesci. Sem o tom desafiante de The Last Temptation Of Christ e sem a reverência falível de Kundun, Silence chega, perante o ressurgimento global de movimentos intolerantes, nomeadamente com a eleição de Donald Trump nos EUA, como um ato de expiação certeiro.

9/10

domingo, 8 de janeiro de 2017

Intruder in the Dust (Clarence Brown, 1949)

Não é possível ver Intruder In The Dust sem pensar em To Kill A Mockingbird (1962). Ambos lidam com casos de afro-americanos detidos injustamente na sequência de um crime, expondo o racismo que domina a população e que acaba por afetar os respetivos advogados de defesa. O foco recai sobre as crianças que os rodeiam, desestabilizando a inocência dos filhos de Atticus Finch (Gregory Peck), vítimas impotentes da tensão social gerada na adaptação do romance de Harper Lee, e moldando o carácter do sobrinho de John Stevens (David Brian), parte ativa na procura de justiça nesta adaptação do romance de William Faulkner.

Logo aí há uma diferença importante. As personagens principais de um ocupam grande parte do seu tempo de ecrã com brincadeiras próprias da infância, por vezes testemunhando ou sofrendo as consequências do reacionarismo que a história pretende denunciar, sem o combater ou sequer compreender, ao passo que, no outro, o jovem Chick (Claude Jarman Jr., um dos mais reconhecíveis menores de idade da era de ouro de Hollywood) está a entrar na adolescência e, quando sua vila é abalada pelo suposto assassinato de um homem branco por um homem preto, adquire à força uma perceção de determinadas questões adultas, para além de ser essencial para provar a inocência de Lucas.

Essa evolução obriga a que Intruder In The Dust seja mais direto e negro, basta dizer que Chick chega a abrir a campa do defunto, contra todos os pressupostos legais, descobrindo-a vazia e forçando uma nova direção na investigação em curso. Quando no início é capaz de dar ordens a alguém com uma cor de pele diferente da sua só por achar que tem esse direito adquirido, no fim tem consciência plena de que existem desigualdades. Um importante exemplo é o de Miss Habersham (Elizabeth Patterson), que, apesar dos seus quase 80 anos, oferece resistência à vontade popular de vingança contra Lucas, expondo a tendência para a despersonalização em dinâmicas de grupo.

O recurso a cenários reais do Mississippi, terra natal de Faulkner, também lhe dá uma vantagem, a apresentação do sul impiedoso é vívida. A queda num rio congelado força o primeiro encontro entre Chick e Lucas. As mansões das famílias brancas contrastam com as barracas das famílias pretas. Areias movediças escondem um corpo sem vida. Por esta altura, Clarence Brown já havia sido nomeado para o Óscar de Melhor Realizador seis vezes, ficando patente um pragmatismo que só a experiência pode atribuir. Sem tribunais, sem melodrama, sem grandes discursos, este filme retrata o estado de coisas com uma crueza extraordinária.

8/10

domingo, 18 de dezembro de 2016