domingo, 29 de janeiro de 2017

Silence (Martin Scorsese, 2016)

Martin Scorsese queria fazer um filme sobre Jesus desde que interiorizara que atrás de cada ida ao cinema existia a visão de um realizador a orquestrar o resultado final. Reza a lenda, que terá sido Barbara Hershey, a protagonista de Boxcar Bertha, a sua segunda longa-metragem, a apresentar-lhe o livro The Last Temptation Of Christ, de Nikos Kazantzakis, durante as gravações, antes ainda do sucesso de Mean Streets, Taxi Driver ou Raging Bull. Ambos colaborariam para o transpor das páginas para o grande ecrã em 1988, o que perfaz mais de uma década entre o início e o fim do projeto.

Depois temos o caso de Gangs Of New York. Supostamente, Scorsese questionara-se toda a vida sobre a Nova Iorque primitiva, sobre os primórdios da sua cidade natal, que na juventude lhe parecia esconder segredos de um passado diferente da realidade que conhecia, dos arranha-céus art deco, das comunidades europeias refugiadas nos seus bairros bem delimitados, das luzes da Broadway e de Times Square. Ao ler sobre as violentas rivalidades numa fase de crescimento abrupto, em especial com a vaga de irlandeses que fugiam da fome, começou a compor um épico que apenas viu a luz do dia em 2002.

Isto tudo para ilustrar que o realizador não é estrangeiro nenhum a ideias que demoram anos e anos a materializar-se. É esta ambição e paixão que fazem de Scorsese um iconoclasta movido por uma vontade indomável de fazer mais e melhor, com a devida vénia aos inovadores que no passado fizeram o mesmo. Assim, 28 anos após um arcebispo de Nova Iorque lhe ter entregado uma cópia do livro Silence, de Shusaku Endo, a intenção de o adaptar materializa-se finalmente, numa era de paralelismos evidentes em relação ao Japão do séc. XVII retratado. Talvez seja o destino, para quem acredita nisso.

Acreditar é um conceito omnipresente nos filmes de Scorsese. Acreditar nas relações – Alice Doesn’t Live Here Anymore. Acreditar em nós próprios – Raging Bull. Acreditar na família – Goodfellas. Acreditar no dinheiro – The Wolf Of Wall Street. Normalmente o foco cai na incapacidade de confiar e nas incertezas que isso gera, ou na fé cega e nas traições que daí advêm. Silence insere-se na categoria da crença numa religião, como The Last Temptation Of Christ e Kundun, dois projetos extremamente pessoais, cuja aceitação popular foi marginal ou pouco expressiva.

Logo à partida, são exemplos de distanciamento das convenções narrativas de que a generalidade dos filmes depende para criar conflitos e definir personagens. Jesus a caminho da crucificação, o Dalai Lama ameaçado pelo comunismo e, agora, estes padres portugueses num país que acaba de banir o cristianismo, deambulam à procura de respostas, por realidades adversas, carregando o peso crescente das suas dúvidas, realçado pela narração, que segura todos os pedaços, numa cadência hipnotizante. Depois, apontam o foco à introspeção, num apelo à humildade (por acaso, um valor jesuíta intemporal).

No entanto, não é descabido dizer que, com a expansão da fé motivada pela globalização marítima, a igreja assumira arrogantemente que merecia destaque universal, até encontrar fortes obstáculos políticos. Quando Rodrigues (Andrew Garfield) sai de Macau com Garupe (Adam Driver), tem de andar clandestinamente atrás de Ferreira (Liam Neeson), o mestre que os introduziu na ordem, sendo incerto se o encontrarão vivo, morto ou apostático. Qual Apocalypse Now eclesiástico, o caminho até à verdade, sobre o destino do conterrâneo e sobre os limites da doutrina em que se alicerçaram, revela-se confuso, penoso e surpreendente.

Nas aldeias por onde passam contactam com populações reprimidas não por falharem no pagamento dos impostos, por se desleixarem no trabalho ou por cometerem crimes, mas simplesmente por acreditarem em algo, algo que dá significado às suas pobres vidas e a que não renunciam. A questão que mais à frente surge é se se sacrificam pelos ideais do cristianismo ou se o fazem pela família, pelos amigos e pelos padres. Serão o paraíso e a ressurreição conceitos demasiado transcendentes numa civilização terrena e prática como a japonesa? Nesse caso, as clivagens culturais talvez sejam insanáveis.

Cabe a Rodrigues estabelecer a distinção. Tudo e todos testarão as suas convicções, desde a violência que testemunha, passando pela forma superficial como os locais encaram a confissão, às interjeições do inquisidor de Nagasaki (Issei Ogata), um antagonista com a perfídia de Hans Landa em Inglourious Basterds e, para desespero da personagem principal, com uma noção superior do status quo contemporâneo. Não deixa de ser um confronto entre a ingenuidade de um jovem e a objetividade de um sábio. A mestria de Silence está em transformar a frustração previsível numa experiência enriquecedora.

O cinema de Scorsese está repleto de homens solitários de Deus e de dilemas morais. Longe das ruas de Nova Iorque e alinhada com a maturidade de um septuagenário, é possível argumentar que esta é das manifestações mais puras desses temas recorrentes. Só não é a definitiva porque Garfield não é De Niro ou DiCaprio, nem Driver é Keitel ou Pesci. Sem o tom desafiante de The Last Temptation Of Christ e sem a reverência falível de Kundun, Silence chega, perante o ressurgimento global de movimentos intolerantes, nomeadamente com a eleição de Donald Trump nos EUA, como um ato de expiação certeiro.

9/10

2 comentários:

  1. Gostei do texto :)
    É um filme muito sumarento, sem dúvida. Vale a pena degustar. A cada filme, uma talhada cada vez mais madura, um proveitoso pedaço de fruta - perdão: de arte.

    Cumps.
    Roberto Simões
    cineroad.blogspot.com

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