Mostrar mensagens com a etiqueta 1945. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta 1945. Mostrar todas as mensagens

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Scarlet Street (Fritz Lang, 1945)

Com o surgimento do nazismo na Alemanha e a sua expansão forçada para territórios vizinhos, muitos artistas e técnicos do cinema europeu, em especial aqueles com origens judaicas, decidiram ou tiveram a oportunidade de emigrar para Hollywood. Billy Wilder, Otto Preminger e Fritz Lang são alguns dos exemplos mais óbvios; curiosamente, os três viriam a deixar a sua marca no film-noir, um género notório por mascarar as frustrações da sociedade americana sob histórias de crime, anti-heróis cínicos e um niilismo ubíquo.

Lang voltou a ele imensas vezes, sem grandes flutuações em qualidade. Poucos se podem gabar de ter construído duas carreiras com sucesso, em lugares temporais e geográficos diferentes. Antes de emigrar para Paris em 1934, o realizador alemão puxou o expressionismo aos limites em Dr. Mabuse The Gambler, Metropolis ou M, fundindo os pilares estilísticos estabelecidos com narrativas complexas. Chegado à Califórnia, aperfeiçoa a sua subtileza com Fury e por aí adiante.

Em breve chegaria uma dupla de filmes onde é usado praticamente o mesmo elenco e que solidifica as bases de certos lugares recorrentes do film-noir: The Woman In The Window e Scarlet Street, que contam com Edward G. Robinson no papel de um homem de meia-idade que, por acidente no primeiro e ingenuidade no segundo, se vê a contas com situações para as quais não está preparado, nomeadamente roubo, omissão de factos à polícia, roubo de identidade, chantagem e homicídio.

Enquanto The Woman In The Window finda com um suspiro de alívio, Scarlet Street acaba num tom deprimente. Caixa dum milionário do têxtil, Christopher Cross já deu provas de ser confiável e tem um emprego estável. Só que, a nível pessoal, por muito que o reprima, é palpável o negativismo. Preso num casamento sem sentido em que a sua masculinidade é ameaçada diariamente, baixo e pouco atraente, pinta horas a fio, sonhando com uma carreira como artista e com o amor duma mulher jovem e bela.

Kitty March entra em cena e é tudo o que ele desejava… não fosse o facto de se colar a Chris apenas por achar que ele é um pintor reconhecido e lhe querer sacar umas coroas. É uma verdadeira femme fatale com más intenções, que Joan Bennett interpreta com sensualidade e convicção e que, por sua vez, é também manietada por Johnny (Dan Duryea), um vigarista de meia-tigela. O enredo é bastante espesso e assenta na ideia de que nem alguém honesto como Chris é de ferro.

Além disso, distancia-o dos filmes de crime da altura o facto de a personagem principal não sofrer consequências. Os erros de Chris são imputados a Johnny, o que traz alguma satisfação sórdida, mas não é verdadeiramente justo. Partidas do destino que deixam um sabor amargo. Estes dilemas morais e esta psicologia da corrupção são temas caros a Lang. A fotografia é, como sempre, excelente. O que seria do film-noir sem a sensibilidade europeia?

8/10

domingo, 8 de março de 2015

Detour (Edgar G. Ulmer, 1945)

A sorte e o azar são duas faces de uma moeda a que atribuímos importância (arrisco-me a dizer) diária, nas mais variadas encruzilhadas com que nos deparamos. Quando fazemos um teste e achamos que o nosso conhecimento não tem o exclusivo da preponderância no resultado final ou quando saímos de casa e escolhemos o caminho A e não o B na esperança de apanhar menos trânsito; frequentemente até questões de saúde, que sabemos dependerem apenas de fatores genéticos ou comportamentais, podem para ai confluir consoante a surpresa, gravidade ou proximidade com que nos atingem. Num momento ou noutro já sentimos que a sorte e o azar não estão restritos aos casinos ou às casas de apostas, antes parecem controlar o nosso quotidiano. Isto, qual lampreia à bordalesa em pleno alto Minho, é uma das especialidades do film-noir, sendo Detour um dos exemplos clássicos disponíveis para degustação.

Não era o emprego perfeito para um pianista com aspiração a tocar no Carnegie Hall como Al Roberts, mas tocar melodias comerciais no Break O’ Dawn Club pelo menos era seguro, recebia-se gorjetas jeitosas e ainda se podia estar junto da namorada. Diz ele: “I was an ordinary healthy guy and she was and ordinary healthy girl and when you get those two together you get an ordinary healthy romance, which is the old story, sure, but, somehow, the most wonderful thing in the world”. Sim, diz ele… ao balcão de um tasco perdido no escuro da noite algures à beira de uma estrada, enquanto remói as reviravoltas inesperadas que a sua vida sofreu e se lembra de como, afinal, era feliz antes de meter na cabeça que valia a pena mudar-se para a Califórnia atrás de Sue, que o abandonou em detrimento do seu sonho de vingar em Hollywood. Entre o nevoeiro do Este e o sol do Oeste desenrola-se uma grande viagem.

Nada mais condizente com a mitologia americana do que ir costa a costa pedindo boleia. Com o mínimo de glamour possível, afinal isto é film-noir. Precisamente no carro de um estranho é que as ilusões se começam a desfazer, quando o condutor troca de lugar com Roberts e adormece no lugar do passageiro, para nunca mais acordar. Terá sido um ataque cardíaco ou qualquer maleita com efeito fulminante? Terá sido a queda acidental sobre uma rocha no momento em que Roberts abre a porta do seu lado, para o acudir? O protagonista não se sente culpado nem sequer tem razões para isso, só que o medo e a frustração leva-nos a ações disparatadas. Desempregado e sem dinheiro, que faria a polícia se fosse chamada a intervir? Certamente julgariam que matou o homem de propósito. A cena parece um esboço monocromático do assassinato dum polícia no meio de nenhures em Fargo, no deserto em vez de ser na neve.

Mais à frente, cruza caminhos com uma mulher do passado do morto e vai tudo de mal para pior. A tensão é muita, especialmente por parecer prestes a resvalar para um romance escaldante a qualquer momento. Tivesse Edgar G. Ulmer um pingo de criatividade e a primeira interação entre eles não se resumiria aos mesmos dois planos num veículo em movimento repetidos cinquenta vezes, seria bastante mais eletrizante. No meio de tanta confusão, Roberts quer manter, no mínimo, a lealdade a Sue, até a reencontrar. Se a reencontrar. No fundo, é um tipo com bom fundo, atraiçoado pelas circunstâncias… e com uma dose tremenda de azar. Ou será que se torna mesmo num criminoso? Qual é a diferença deontológica entre matar sem querer e matar por raiva? Tudo perde significado, exceto a existência singela que antes se desdenhava. A sorte e o azar não estão restritos aos casinos ou às casas de apostas, invadem o quotidiano.

7/10