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sábado, 16 de maio de 2015

E.T. The Extra-Terrestrial (Steven Spielberg, 1982)

Quando penso no meio em que cresci e nas pessoas que me rodearam, fico espantado por dedicar tanto tempo e atenção a uma área predominantemente artística como o cinema. Sempre fui encorajado a brincar com microscópios, a fazer construções em Lego e a ler sobre o cosmos, para além da razoável inclinação familiar, se a genética tiver algo a ver com o assunto, para a saúde, a engenharia, entre outras. O destino reservar-me-ia um futuro profissional nessa onda, no entanto, o fascínio pelo grande ecrã nunca amainou.

Suponho que, como quase tudo, foi mais um gosto adquirido, pois tive o mesmo acesso que milhares de outras crianças minhas contemporâneas. A prova é que os momentos que me marcaram a este nível tiveram uma origem perfeitamente vulgar: ir à Trindade ver The Lion King com os colegas da escola primária e ficar de boca aberta com a introdução, encontrar um VHS do Platoon aos 13 anos e constatar que havia outros horizontes além das animações Disney ou ver na RTP2 documentários do Martin Scorsese na adolescência.

Contudo, o filme ao qual tive maior exposição na infância foi, sem dúvida, E.T. The Extra-Terrestrial. Não me lembro a partir de que Natal começou a tradição, mas nessa época era obrigatório passar na televisão e eu nunca o perdia. A repetição reconforta os mais novos, o que pode explicar, parcialmente, porque me sentava no sofá todos os meses de Dezembro para apanhar a mesma história, uma e outra vez. Parcialmente, porque já nessa altura sentia que a experiência era diferente e melhorava à segunda, à terceira, e por aí fora.

Ao rever esta pérola de Steven Spielberg que deixou uma marca indelével na cultura dos anos 1980, algo que não fazia há uma década, no mínimo, fiquei com a certeza de que o tempo só fortalece o seu impacto e, por isso, a torna imortal. A imaginação tem liberdade total na inocência da meninice e poucas ideias são capazes de a estimular como a possibilidade de atravessar a fronteira da atmosfera e viajar pelo espaço ou entrar em contacto com seres que façam o caminho inverso e aterrem perto de nós, especialmente um da nossa idade.

Em adulto assome a memória dessa visão simples e sonhadora de outrora, todavia a maior injustiça que se poderia cometer com E.T. The Extra-Terrestrial seria dizer que a nostalgia é o seu atributo principal. Quando o pequeno alien é deixado para trás, por necessidade, na sequência puramente visual de abertura, o trauma do abandono num sítio estranho e a vontade de encontrar uma solução que passa a acompanhar as personagens e os espectadores daí para a frente são primitivas e impossíveis de contrariar.

Perto da clareira onde isso acontece mora Elliott (Henry Thomas), irmão mais novo de Michael e mais velho de Gertie (Drew Barrymore). O encontro inevitável gera, antes, medo, e, depois, fascínio. Como a comida conquista qualquer um, o rapaz deduz que uns M&M’s são um bom chamariz para a criatura que pensa ser um gnomo. De repente, já estão os dois no quarto de Elliott e começa a estabelecer-se um laço único e inexplicável. Michael e Gertie passarão a carregar o segredo, que é vital esconder dos “grandes”.

Ambos são importantes no desenrolar dos acontecimentos. O primeiro assume uma operação de busca e outra de resgate quando é exigido e a segunda ensina o inglês, da mesma forma que o ensinam a ela, para além de ser adorável (ninguém diria que ia sair daqui um dos anjos de Charlie). A ligação com Elliott, essa é irreplicável - partilham sentimentos e comportamentos. Ao princípio parece engraçado, quando um se assusta o outro também, estejam próximos ou não. Mais tarde, os seus estados de saúde deterioram-se em simultâneo.

Um detalhe cuja percepção se amplia imenso quando se tem outra maturidade é o efeito nocivo que a nossa atmosfera rica em azoto e oxigénio tem no extraterrestre. O funcionamento exacto do seu organismo e, em específico, do seu sistema respiratório é desconhecido. Apesar disso, ele dá-se bem dentro de água, está em sintonia com a fotossíntese das flores espalhadas por casa e a sua espécie tem um interesse claro pela botânica no início. O realizador chegou a admitir que o argumento original explicava que E.T. é uma planta.

Outro tópico que tem gerado vários rumores prende-se com as constantes referências a Star Wars. Vemos brinquedos das naves e um disfarce de Yoda no dia de Halloween, que o nosso amigo doutro planeta reconhece imediatamente. Isto, a juntar à sua capacidade de levitar bicicletas à luz do luar com o poder da mente, como na imagem mais mítica associada ao filme, semeiam a dúvida sobre se estará a usar a Força e se será um Jedi. A sua raça está representada no Senado da “space opera” concebida por George Lucas.

O que Spielberg se esforça por transmitir é a noção de procura por um lar. Essa luta revela-se universal, não só no contexto intergaláctico da história, mas, na verdade, está inerente à condição humana associarmo-nos, reproduzirmo-nos, partilhar-mos a vida com outros, precisamente crescermos num determinado meio e com determinadas pessoas ao nosso redor. Elliot e E.T. têm isso em comum, por via de uma família despedaçada com pai ausente e por via de uma separação forçada. No fundo, ambos gostariam de voltar a casa.

Talvez por isso, quando, depois de tantas peripécias, depois de morrer e ressuscitar (a incredulidade total directa de Ordet), depois de uma fuga ao governo polvilhada com puro engenho cinemático, finalmente se encontra na entrada da sua nave para regressar, o protagonista alien lance ao protagonista terráqueo um “come” sincero. A resposta é um desarmante “stay”. Chegou ao fim a aventura. Acho que não há outra cena nos anais do cinema que me emocione mais do que esta, tão simples e tão mágica que é.

A porta fecha-se rodeando o coração do E.T., que brilha no peito. No céu fica um rasto colorido igual a um arco-íris. O mais genial tema de John Williams entoa nas colunas e ecoa na alma. O Spielberg historiador é bom, mas o fantasista é melhor. Suponho que, independentemente das aptidões ou oportunidades, seja por isto que os filmes se tornaram importantes para mim: a possibilidade de pôr de lado as dúvidas e as certezas da realidade para ceder à mais pura e intangível utopia. E.T. The Extra-Terrestrial é a essência do cinema.

10/10

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Basket Case (Frank Henenlotter, 1982)

Basket Case destaca-se da miríade de filmes de terror com baixo orçamento que se multiplicaram durante os anos 1980 pela sua história. Sinceramente, casas assombradas como em The Amityville Horror e assassinos sem rosto ao estilo de Friday The 13th já todos vimos. Agora, um tipo bem-parecido e pacífico como Duane Bradley (Kevin Van Hentenryck) a transportar uma cesta de piquenique por uma Nova Iorque nocturna e decrépita que esconde uma aberração em forma de pedregulho com dentes que mais se assemelha a um Geodude carnívoro (desculpem a referência a Pokémon, não me contive) e que solta para matar uma série de médicos incompetentes que tiveram algo a ver com o seu passado, isso já não é assim tão comum.

E o que é, afinal, esta espécie de tumor tumefacto que, sabe-se lá como, sobrevive, aparenta ter força sobrenatural nos seus pequenos braços e mandíbulas e responde pelo nome de um demónio hebraico? O irmão siamês de Duane – obviamente! A explicação vem a meio do filme, regada a álcool, em jeito de piada, feita a uma prostituta, num bar bolorento (acho que já escrevi isto milhões de vezes, mas não há mesmo melhor cenário do que a Big Apple, seja para que género for) e um longo flashback sucede-se, como em Casablanca ou Sleepaway Camp, para mostrar um passado memorável. Separados apenas aos 12 anos, partilharam uma infância de reclusão e rancor familiar.

Atormentado por ter gerado semelhante aberração, o pai balanceia sentimentos de nojo e dever, difícil quando, ainda para mais, perdeu a esposa no parto e tenta perceber até que ponto uma operação, que deverá custar a vida a um dos filhos, não será uma traição à sua memória e ao que construíram juntos. Finalmente, três experimentalistas da medicina oferecem-se para realizar o procedimento, com o único objectivo de tornar Duane num rapaz normal. Contudo, Belial vive e desenvolve um grande apetite por hambúrgueres e vingança. Basket Case é, no fundo, a expiação de um trauma de infância, mas o que se lhe poderá seguir? Que vida existirá para os irmãos depois da sua sangrenta vendeta?

Van Hentenryck é o mau actor que faz o filme resultar. Como é habitual, o bizarro e o humor andam de mãos dadas e nada melhor do que alguém tentar trazer a melhor dicção e reacções tão variadas quanto possível a cada situação. A cena em que Duane e a recepcionista Sharon se conhecem é fabulosa – ela lança gritinhos histéricos ao saber que ele ainda não tinha visitado nada na cidade; ele está ali para matar o patrão dela. O amor acontece. Aliás, a montagem inicialmente distribuída levou mesmo grandes cortes no gore para realçar o amadorismo cómico, mas Basket Case merece ser visto em toda a sua glória, com sangue a espirrar por todo o lado.

7/10

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

Yol (Serif Gören, Yilmaz Güney, 1982)


Yol acaba com um agradecimento a todos os que nele participaram, à frente e atrás das câmaras, superando as grandes contrariedades naturais e sociais que dificultaram a sua execução. Quanto às primeiras, na altura em que esta mensagem aparece já terá ficado patente os sacrifícios que devem ter sido feitos para conseguir gravar todas as cenas, que incluem passagens por prisões de alta segurança, aldeias no deserto e trilhos nas montanhas mais remotas e com condições atmosféricas mais adversas que se pode conceber. Relativamente à segunda parte, é acima de tudo uma referência ao facto de Yilmaz Güney, argumentista/realizador curdo, estar preso na altura e de as filmagens terem sido secretas e coordenadas pelo seu assistente, Serif Gören.

Com o golpe de estado de 1980 na Turquia, Güney conseguiu fugir para a Suiça no ano seguinte, onde montou o filme, que viria a ganhar a Palma de Ouro no festival de Cannes. É sobre essa época conturbada que se foca a história, na qual vários reclusos da prisão de Imrali (a mesma de Midnight Express) recebem licença de saída jurisdicional. A quantidade de personagens que somos levados a seguir acaba por ser a sua principal força e fraqueza, porque vemos vários lados e perspectivas dos conflitos que se propagavam por todo o país (chegou a ser fundado um movimento armado para a fundação de um estado curdo e, como consequência, foi imposta uma lei marcial), mas algumas acabam por ser inevitavelmente menos interessantes que outras.

Duas delas sobressaem: Mehmet Salin, um homem à procura de paz e dignidade, que vive com o remorso de ter abandonado o cunhado durante um roubo a dois e de o ter visto ser abatido à queima-roupa pela polícia através do retrovisor, enquanto tentava fugir de carro. Temporariamente livre, Salin quer pedir o perdão da esposa, filhos e restante família pela sua atitude cobarde, motivada pelo medo. A primeira pessoa que vai ver é um amigo acamado, a quem primeiramente conta uma versão um pouco mais heróica dos factos, só para depois assumir que está a mentir e desabafar sem reservas. É um momento simples e tocante, filmado com grande sobriedade. Ao mesmo tempo, Seyit Ali viaja à terra natal para confrontar a mulher, que o cobre de vergonha por se ter transformado numa prostituta.

Os espaços físicos do filme vão sendo cada vez mais extensos e ermos, talvez indicando aquilo que estes homens realmente desejam: liberdade. Porque não é só o crime e a política que os mantém cativos, mas também as tradições religiosas e culturais, a que têm de obedecer quando deixam de ter de obedecer aos guardas prisionais. O tratamento das mulheres merece reflexão; a desigualdade entre sexos ainda não foi extinta nos países ocidentais, mas podemos pôr as coisas em perspectiva se nos lembrarmos do quão atrasados estão outros povos nesta matéria, a verdade é essa... Considerando tudo isto, é um milagre que este filme tenha sido feito, e acredito que isso tenha sido tomado em conta na Croisette, num ano particularmente forte. No entanto, a qualidade e o alcance de Yol é mesmo uma evidência.

7/10

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

Conan The Barbarian (John Milius, 1982)

Ainda que os anos 80 tenham sido um período rico em filmes de culto daqueles que são tão maus que acabam por ser espectaculares, esse não é tanto o caso de Conan The Barbarian. É certo que nesta altura surgiram muitas estrelas de cinema mais laureadas pelos seus músculos e capacidades físicas do que pelo seu talento como actores ou pela qualidade dos seus filmes, e Conan The Barbarian não deixa de ser, acima de tudo, a rampa de lançamento de Arnold Schwarzenegger, alguém que se insere com facilidade nessa categoria e que não passou a oportunidade de exibir aqui a sua forma física impressionante. Ainda assim, esta não deixa de ser uma grande aventura e uma produção com muitos méritos.

Herói maior do género de "sword & sorcery fantasy", Conan é um guerreiro de respeito num tempo longínquo. Feito escravo ainda criança, acaba por readquirir a sua liberdade à custa de muita violência e veneração por Crom, um deus cruel e imperdoável, central na cultura do aço. Embarca então numa busca pelo homem que matou a sua família e destruiu a sua aldeia, o poderoso feiticeiro Thulsa Doom (James Earl Jones). Apesar de o vilão não ser o esqueleto da literatura, a sua figura não deixa de impor respeito e semear medo, quer pela sua forma sibilina de discursar, quer pelos seus poderes mágicos. Numa cena, uma mulher suicida-se displicentemente em honra ao seu culto de cobras. Na ficção como na realidade, a influência dos grandes líderes dá que pensar.

Conan é um solitário silencioso, o que é adequado para o carrancudo Schwarzenegger. Tal como na banda desenhada, são os seus feitos que movem a acção e o filme torna-se muito visual, quase sempre apoiando-se na natureza ou nos cenários sumptuosos que o rodeiam para transmitir a sua sede de vingança e a incerteza do seu destino. Cada personagem, cada local parece esconder segredos e ameaças, tão inusitadas para Conan como para o espectador, ainda que nunca de forma tão tenebrosa como no papel. A partir do momento em que vemos uma mulher aliciá-lo com sexo para se transformar numa espécie de demónio vampiresco, pronta para o despedaçar à dentada, fica a sensação de que qualquer coisa pode acontecer.

Dada a sua pouca expressividade e aparente desdém por sentimentalismos, a relação amorosa de Conan com uma ladra, Valeria, poderia não passar de um fait diver supérfluo, mas o entendimento imediato que os dois estabelecem e a sagacidade dela acabam por revelar muito subtilmente um lado menos intenso de Conan, que noutras ocasiões não hesitara a tratar mulheres como pedaços de carne ou a não ter em consideração as opiniões de terceiros. Algo arrojado realmente, este filme, por várias vezes, mostra sem pudor o lado mais selvagem da era Hiboriana, não se coibindo mesmo de incluir uma orgia numa cena importante na busca de Conan. A podridão do culto de Doom é evidente.

O argumento não tem sempre a mesma força, decaindo um pouco nas cenas com o mago narrador, por exemplo, e o filme está algo datado, não parecendo agora tão sombrio ou fantasioso como talvez parecesse quando saiu, mas John Milius e a sua equipa fizeram um óptimo trabalho em termos de efeitos especiais e de utilização do espaço, tão importante na nossa percepção da história e dos protagonistas. A procura de Conan é, acima de tudo, pelo significado da vida num mundo corrompido por superficialidades, depois de lhe ter sido negado tanto durante tanto tempo. Afinal também há filmes de culto dos anos 80 com arquétipos ambulantes no papel de actores com alguma profundidade e qualidade.

7/10