Quando penso no meio em que
cresci e nas pessoas que me rodearam, fico espantado por dedicar tanto tempo e
atenção a uma área predominantemente artística como o cinema. Sempre fui
encorajado a brincar com microscópios, a fazer construções em Lego e a ler sobre
o cosmos, para além da razoável inclinação familiar, se a genética tiver algo a
ver com o assunto, para a saúde, a engenharia, entre outras. O destino
reservar-me-ia um futuro profissional nessa onda, no entanto, o fascínio pelo
grande ecrã nunca amainou.
Suponho que, como quase tudo, foi
mais um gosto adquirido, pois tive o mesmo acesso que milhares de outras
crianças minhas contemporâneas. A prova é que os momentos que me marcaram a
este nível tiveram uma origem perfeitamente vulgar: ir à Trindade ver The Lion
King com os colegas da escola primária e ficar de boca aberta com a introdução,
encontrar um VHS do Platoon aos 13 anos e constatar que havia outros horizontes
além das animações Disney ou ver na RTP2 documentários do Martin Scorsese na
adolescência.
Contudo, o filme ao qual tive
maior exposição na infância foi, sem dúvida, E.T. The Extra-Terrestrial. Não me
lembro a partir de que Natal começou a tradição, mas nessa época era
obrigatório passar na televisão e eu nunca o perdia. A repetição reconforta os
mais novos, o que pode explicar, parcialmente, porque me sentava no sofá todos
os meses de Dezembro para apanhar a mesma história, uma e outra vez.
Parcialmente, porque já nessa altura sentia que a experiência era diferente e
melhorava à segunda, à terceira, e por aí fora.
Ao rever esta pérola de Steven
Spielberg que deixou uma marca indelével na cultura dos anos 1980, algo que não
fazia há uma década, no mínimo, fiquei com a certeza de que o tempo só
fortalece o seu impacto e, por isso, a torna imortal. A imaginação tem liberdade
total na inocência da meninice e poucas ideias são capazes de a estimular como
a possibilidade de atravessar a fronteira da atmosfera e viajar pelo espaço ou
entrar em contacto com seres que façam o caminho inverso e aterrem perto de
nós, especialmente um da nossa idade.
Em adulto assome a memória dessa
visão simples e sonhadora de outrora, todavia a maior injustiça que se poderia
cometer com E.T. The Extra-Terrestrial seria dizer que a nostalgia é o seu
atributo principal. Quando o pequeno alien é deixado para trás, por
necessidade, na sequência puramente visual de abertura, o trauma do abandono num
sítio estranho e a vontade de encontrar uma solução que passa a acompanhar as
personagens e os espectadores daí para a frente são primitivas e impossíveis de
contrariar.
Perto da clareira onde isso
acontece mora Elliott (Henry Thomas), irmão mais novo de Michael e mais velho
de Gertie (Drew Barrymore). O encontro inevitável gera, antes, medo, e, depois,
fascínio. Como a comida conquista qualquer um, o rapaz deduz que uns M&M’s
são um bom chamariz para a criatura que pensa ser um gnomo. De repente, já
estão os dois no quarto de Elliott e começa a estabelecer-se um laço único e
inexplicável. Michael e Gertie passarão a carregar o segredo, que é vital
esconder dos “grandes”.
Ambos são importantes no desenrolar
dos acontecimentos. O primeiro assume uma operação de busca e outra de resgate
quando é exigido e a segunda ensina o inglês, da mesma forma que o ensinam a
ela, para além de ser adorável (ninguém diria que ia sair daqui um dos anjos de
Charlie). A ligação com Elliott, essa é irreplicável - partilham sentimentos e
comportamentos. Ao princípio parece engraçado, quando um se assusta o outro também,
estejam próximos ou não. Mais tarde, os seus estados de saúde deterioram-se em
simultâneo.
Um detalhe cuja percepção se
amplia imenso quando se tem outra maturidade é o efeito nocivo que a nossa
atmosfera rica em azoto e oxigénio tem no extraterrestre. O funcionamento
exacto do seu organismo e, em específico, do seu sistema respiratório é
desconhecido. Apesar disso, ele dá-se bem dentro de água, está em sintonia com
a fotossíntese das flores espalhadas por casa e a sua espécie tem um interesse
claro pela botânica no início. O realizador chegou a admitir que o argumento
original explicava que E.T. é uma planta.
Outro tópico que tem gerado
vários rumores prende-se com as constantes referências a Star Wars. Vemos brinquedos
das naves e um disfarce de Yoda no dia de Halloween, que o nosso amigo doutro
planeta reconhece imediatamente. Isto, a juntar à sua capacidade de levitar
bicicletas à luz do luar com o poder da mente, como na imagem mais mítica
associada ao filme, semeiam a dúvida sobre se estará a usar a Força e se será
um Jedi. A sua raça está representada no Senado da “space opera” concebida por
George Lucas.
O que Spielberg se esforça por
transmitir é a noção de procura por um lar. Essa luta revela-se universal, não
só no contexto intergaláctico da história, mas, na verdade, está inerente à
condição humana associarmo-nos, reproduzirmo-nos, partilhar-mos a vida com
outros, precisamente crescermos num determinado meio e com determinadas pessoas
ao nosso redor. Elliot e E.T. têm isso em comum, por via de uma família
despedaçada com pai ausente e por via de uma separação forçada. No fundo, ambos
gostariam de voltar a casa.
Talvez por isso, quando, depois de
tantas peripécias, depois de morrer e ressuscitar (a incredulidade total
directa de Ordet), depois de uma fuga ao governo polvilhada com puro engenho
cinemático, finalmente se encontra na entrada da sua nave para regressar, o
protagonista alien lance ao protagonista terráqueo um “come” sincero. A
resposta é um desarmante “stay”. Chegou ao fim a aventura. Acho que não há
outra cena nos anais do cinema que me emocione mais do que esta, tão simples e
tão mágica que é.
A porta fecha-se rodeando o coração
do E.T., que brilha no peito. No céu fica um rasto colorido igual a um
arco-íris. O mais genial tema de John Williams entoa nas colunas e ecoa na
alma. O Spielberg historiador é bom, mas o fantasista é melhor. Suponho que, independentemente
das aptidões ou oportunidades, seja por isto que os filmes se tornaram
importantes para mim: a possibilidade de pôr de lado as dúvidas e as certezas da
realidade para ceder à mais pura e intangível utopia. E.T. The Extra-Terrestrial
é a essência do cinema.
10/10
Mesmo com a enorme lista de sucessos e grandes filmes, "E.T." foi o longa que definitivamente colocou Spielberg entre os maiores diretores do cinema.
ResponderEliminarFiquei com vontade de assistir novamente.
Abraço