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domingo, 30 de abril de 2017

Death And Devil (Stephen Dowskin, 1974)

Imaginem um filme de Ingmar Bergman com apenas duas cenas dignas dessa designação, o triplo dos close-ups e uma banda sonora composta maioritariamente por passagens simples de piano repetidas a um ritmo funerário e o que mais parecem ser ecos de um sonar a espalharem-se pelo oceano. Stephen Dwoskin não é bem conhecido pelo público em geral, aliás é um nome obscuro – o que não é propriamente incompreensível, considerando experiências pouco convencionais como esta. A sua abordagem minimalista não só é extrema como tem o seu quê de frustrante, mesmo que seja bastante reveladora.

Death And Devil abre com uma montagem de longos minutos em que uma jovem, Lisiska, esboça uma multitude de expressões faciais para a câmara, divaga pela sua casa e prepara-se para sair, tudo filmado com uma proximidade quase intimidadora. Eventualmente, assistimos a uma conversa deprimente entre um homem e uma mulher mais velhos, cujos nomes são irrelevantes, sobre desejo, perceções e deceções. Segue-se o encontro de Lisiska com outra personagem masculina, com quem parece não ter nada para falar, e acabamos com dezenas de minutos de análises extensivas dos rostos dos atores. Só.

Quer dizer, obviamente que há uma grande carga emocional inerente. O estilo é radical, mas Dwoskin demonstra astúcia na interpretação da infelicidade das duas mulheres retratadas, muito diferentes entre si - uma bonita e despreocupada, outra com um ar pesado e pouca paciência para sentimentos ou sexo -, e é-o especialmente quando se permite a fazer uso às palavras. A grande diferença entre Lisiska e a outra senhora talvez seja que a primeira se conforma quando é mal interpretada e a segunda contradiz quem quer que seja, quando é necessário. Acima disso, está a forma como os homens veem o género feminino, como interpretam erradamente o seu comportamento e como contribuem para a distância que daí advém.

O filme passa-se todo na mesma casa, contudo as pessoas estão sempre longe umas das outras, inclusive quando dialogam raramente partilham o enquadramento. O trabalho de câmara é tão intrusivo e ansioso que cativa e perturba em igual quantidade. Não há tanto interesse em mostrar interação como em estabelecer intimidade. Objetivo conseguido, Death And Devil não é nada acessível, mas é sufocante. Imaginem ir ao teatro, serem puxados da audiência e colocados em palco a olhar diretamente para a cara de cada ator por meia hora até ao fim da peça. Seria, sem dúvida, original. Se isso é suficiente enquanto objeto artístico é que fica ao critério de quem se aventura a aderir.

5/10

sábado, 8 de outubro de 2016

Successive Slidings of Pleasure (Alain Robbe-Grillet, 1974)

Uma artista adolescente é presa por supostamente ter assassinado a mulher mais velha com quem vivia. Se por um lado esta insiste que um estranho entrou no apartamento e terá cometido o crime, apesar de lhe pertencer a tesoura usada como arma, por outro diverte-se com a atenção que lhe é dedicada pelo detetive da polícia, o juiz local, o padre e as freiras da prisão, inventando histórias de prostituição, sadomasoquismo e lesbianismo para os chocar – e aos espectadores, diz mesmo uma personagem.

Com Robbe-Grillet as coisas nunca são fáceis de decifrar. Aliás, são propositadamente impossíveis e quando começamos a tentar descobrir o que é verdade e o que é mentira no contexto do enredo é quando o autor passa a ter-nos na mão, porque no cinema tudo é uma ilusão. Assim, é permitido o inexplicável. Successive Slidings Of Pleasure assemelha-se a um labirinto com infinitos becos sem saída e no fim volta-se à entrada. Através de padrões, motivos e repetições somos chamados à atenção para palavras, atos ou objetos que podem ter implicações palpáveis para o caso ou valor puramente surrealista.

A certa altura, o juiz e a adolescente testam-se através de livre associação. O que se conclui através desse método de psicanálise parece ser vago e condicionado pelo que se procura naquilo que se ouve, e cada um procurará algo diferente consoante a sua sensibilidade. Da mesma forma, a pá encontrada num armário pode ou não ter relação com a pá do coveiro que enterra uma amiga da escola. Pela masmorra de tortura medieval em uso pelo clérigo pode estar a ser estabelecido um caso real de maus tratos, um paralelismo simbólico com as bruxas de antigamente ou uma fantasia sexual perversa. E por aí fora.

Tal como em Eden And After, a nudez e a violência são constantes, andam de mãos dadas e têm tanto de perturbador como de fascinante. Robbe-Grillet preenche cada frame de película com a mesma duplicidade de cada página dos seus textos. Ninguém cria um enigma como ele, ou não estivéssemos a falar da pessoa que escreveu Last Year At Marienbad (1961). Hostil à ideia de uma narrativa, em Successive Slidings Of Pleasure constrói outra vez um mundo de provocações intelectuais aberto a todas as interpretações.

8/10

quinta-feira, 24 de maio de 2012

Blazing Saddles (Mel Brooks, 1974)


Quem quiser saber o mínimo sobre cinema tem de saber que, no espectro da comédia, há dois nomes que são sagrados há mais de quatro décadas: Gene Wilder e Mel Brooks. Seja individualmente ou em conjunto, enquanto atores ou realizadores, as contribuições de ambos para o aumento de gargalhadas per capita foram tremendas e continuam a ter repercussões, basta procurar pelos seus trabalhos e senti-las. Olhando para trás, 1974 é indubitavelmente um ano marcante nas suas carreiras. Com Blazing Saddles e Young Frankenstein elaboraram as paródias de western e de terror, respetivamente, que tornaram irrelevantes quaisquer paródias de western e de terror feitas posteriormente.

Inicialmente recebidos com críticas mistas, valorizando a qualidade dos gags mas criticando a falta de personalidade dos filmes e o humor grosseiro, ambos vieram a ocupar um espaço nas prateleiras da biblioteca do congresso americano, por serem culturalmente relevantes. Uma significativa reavaliação, que só foi necessária por um simples facto: estes filmes são loucos. É isso que transparece com grande claridade e que se tem de aceitar desde o início, a sua personalidade é a insanidade mental, e, particularizando para o caso de Blazing Saddles, não há restrições do politicamente correto, não há erros de continuidade que não possam ter a sua lógica interna, não há ator que não tenha liberdade total.

Em algumas alturas é quase como ver a versão circense de Rio Bravo, onde a química entre John Wayne e Dean Martin é substituída pela química entre Cleavon Little e Gene Wilder, as pernas de Angie Dickinson são substituídas pelas pernas de Madeline Kahn e os mauzões locais são campónios racistas que se peidam em conjunto, enquanto jantam feijões à volta de uma lareira, mas abrindo como um filme de Sergio Leone, com grandes planos anamórficos de um oeste calorento e árido, pelo qual o progresso abre caminho sob a forma de uma linha férrea em construção e trabalhadores negros são explorados como os escravos que já não eram. Deste panorama adverso e bem estabelecido, sairá um herói improvável.

Cleavon Little, ou Bart, passa daí para o cadafalso para xerife de Rock Ridge muito rapidamente, uma town que um político com poucas morais, Hedley Lamarr, quer expropriar totalmente e de borla, à força, para de seguida vender as terras à companhia do caminho-de-ferro, que precisa delas para respeitar o traçado. Ora, impor um negro como figura principal da justiça é iniciar uma grande confusão numa comunidade branca e conservadora (apesar da possibilidade de toda a população ser o resultado de incesto, já que todos têm o apelido Johnson), que tem então de decidir se deixa de lado o racismo para combater os capatazes de Hedley ou se ostracizam Bart, negligenciando a proteção de Rock Ridge.

O conceito podia dar um drama muito educadinho, mas estamos a falar de Mel Brooks e o filme só ganha com o realçar do ridículo destes conflitos. Há uma idosa num papel secundário cuja confiança Bart tenta ganhar com conversa de circunstância, só para ser imediatamente desconsiderado com um "up yours, nigger" - engraçado e desconfortável ao mesmo tempo. Mais tarde, Bart dá provas de enorme inteligência e compromisso, e a idosa oferece-lhe uma tarte em forma de pedido de desculpa, sem se esquecer de lhe dizer para o manter em segredo do resto dos Johnsons. Enfim, havendo um objetivo comum (derrotar o exército de ladrões, assassinos, violadores e metodistas de Hedley) há união e fraternidade.

A luta por Rock Ridge leva o filme à desconstrução, passando-se os limites do estúdio do western e espalhando-se para outras zonas da Warner Bros., seguindo cidade fora pelas ruas de Los Angeles e acabando num cinema de Hollywood, onde o fim do filme é projetado. São tantas as convenções que são atiradas pela janela, que se torna difícil absorver um filme que se vai tornando sempre mais denso e hilariante, mas a experiência é sempre recompensadora. Cleavon Little era um ator fabuloso, que mistura a sensibilidade de Sidney Poitier com a amigável sagacidade de Bugs Bunny num dos poucos papéis de protagonista que teve. E o cinema cómico nunca mais foi o mesmo depois de Blazing Saddles.

8/10