Quem
quiser saber o mínimo sobre cinema tem de saber que, no espectro da comédia, há
dois nomes que são sagrados há mais de quatro décadas: Gene Wilder e Mel Brooks.
Seja individualmente ou em conjunto, enquanto atores ou realizadores, as
contribuições de ambos para o aumento de gargalhadas per capita foram tremendas
e continuam a ter repercussões, basta procurar pelos seus trabalhos e
senti-las. Olhando para trás, 1974 é indubitavelmente um ano marcante nas suas
carreiras. Com Blazing Saddles e Young Frankenstein elaboraram as paródias de
western e de terror, respetivamente, que tornaram irrelevantes quaisquer
paródias de western e de terror feitas posteriormente.
Inicialmente
recebidos com críticas mistas, valorizando a qualidade dos gags mas criticando
a falta de personalidade dos filmes e o humor grosseiro, ambos vieram a ocupar
um espaço nas prateleiras da biblioteca do congresso americano, por serem
culturalmente relevantes. Uma significativa reavaliação, que só foi necessária
por um simples facto: estes filmes são loucos. É isso que transparece com
grande claridade e que se tem de aceitar desde o início, a sua personalidade é
a insanidade mental, e, particularizando para o caso de Blazing Saddles, não há
restrições do politicamente correto, não há erros de continuidade que não
possam ter a sua lógica interna, não há ator que não tenha liberdade total.
Em
algumas alturas é quase como ver a versão circense de Rio Bravo, onde a química
entre John Wayne e Dean Martin é substituída pela química entre Cleavon Little
e Gene Wilder, as pernas de Angie Dickinson são substituídas pelas pernas de
Madeline Kahn e os mauzões locais são campónios racistas que se peidam em conjunto,
enquanto jantam feijões à volta de uma lareira, mas abrindo como um filme de
Sergio Leone, com grandes planos anamórficos de um oeste calorento e árido,
pelo qual o progresso abre caminho sob a forma de uma linha férrea em
construção e trabalhadores negros são explorados como os escravos que já não
eram. Deste panorama adverso e bem estabelecido, sairá um herói improvável.
Cleavon
Little, ou Bart, passa daí para o cadafalso para xerife de Rock Ridge muito
rapidamente, uma town que um político com poucas morais, Hedley Lamarr, quer
expropriar totalmente e de borla, à força, para de seguida vender as terras à
companhia do caminho-de-ferro, que precisa delas para respeitar o traçado. Ora,
impor um negro como figura principal da justiça é iniciar uma grande confusão
numa comunidade branca e conservadora (apesar da possibilidade de toda a
população ser o resultado de incesto, já que todos têm o apelido Johnson), que
tem então de decidir se deixa de lado o racismo para combater os capatazes de
Hedley ou se ostracizam Bart, negligenciando a proteção de Rock Ridge.
O
conceito podia dar um drama muito educadinho, mas estamos a falar de Mel Brooks
e o filme só ganha com o realçar do ridículo destes conflitos. Há uma idosa num
papel secundário cuja confiança Bart tenta ganhar com conversa de
circunstância, só para ser imediatamente desconsiderado com um "up yours,
nigger" - engraçado e desconfortável ao mesmo tempo. Mais tarde, Bart dá
provas de enorme inteligência e compromisso, e a idosa oferece-lhe uma tarte em
forma de pedido de desculpa, sem se esquecer de lhe dizer para o manter em segredo
do resto dos Johnsons. Enfim, havendo um objetivo comum (derrotar o exército de
ladrões, assassinos, violadores e metodistas de Hedley) há união e
fraternidade.
A
luta por Rock Ridge leva o filme à desconstrução, passando-se os limites do
estúdio do western e espalhando-se para outras zonas da Warner Bros., seguindo
cidade fora pelas ruas de Los Angeles e acabando num cinema de Hollywood, onde
o fim do filme é projetado. São tantas as convenções que são atiradas pela
janela, que se torna difícil absorver um filme que se vai tornando sempre mais
denso e hilariante, mas a experiência é sempre recompensadora. Cleavon Little
era um ator fabuloso, que mistura a sensibilidade de Sidney Poitier com a
amigável sagacidade de Bugs Bunny num dos poucos papéis de protagonista que
teve. E o cinema cómico nunca mais foi o mesmo depois de Blazing Saddles.
8/10
Tenho muita vontade de ver este filme. Boa critica
ResponderEliminarObrigado Gonga! É uma grande comédia, desconstrutiva e divertida, vale a pena :)
ResponderEliminarAinda não conheço esse filme do Brooks, infelizmente. Sua resenha me despertou a atenção. Abraço.
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