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domingo, 7 de junho de 2015

Slacker (Richard Linklater, 1991)

Quando se fala em cinema dos anos 90, é inevitável falar daquela que é hoje denominada como a geração VHS. Efectivamente, a proliferação de cópias de todos os filmes e mais alguns na década anterior graças a esse formato de vídeo permitiu que vários jovens com espírito autodidacta desenvolvessem as suas próprias opiniões e o seu próprio gosto de forma independente. Paul Thomas Anderson, Quentin Tarantino, Kevin Smith, entre outros, dispensaram a ingressão no ensino superior e passaram directamente detrás de balcões de clubes de vídeo ou lojas de conveniência para detrás das câmaras, já munidos de conhecimento suficiente para conseguirem materializar os seus primeiros filmes e tornarem-se na voz (ou vista) da juventude.

Richard Linklater foi um deles e Slacker foi um ponto de viragem na carreira. A sua segunda longa-metragem desafia qualquer definição e é produto dum zeitgeist muito específico. Hoje tornou-se lugar-comum dizer que a última década do séc. XX foi também a última culturalmente relevante; não vou tão longe, todavia ficou marcada por uma irreverência juvenil, uma despreocupação urbana e uma esperança quanto ao futuro que contribuíram para estabelecer novos horizontes artísticos. Para Linklater era mais importante captar essa atmosfera, as calças de ganga, o grunge, a MTV, os baldas, os fanáticos das conspirações, no fundo focar-se nas pessoas e deixar de lado as convenções da técnica e da escrita.

Um jovem está a chegar a Austin, sai da central de camionagem e apanha um táxi. Fala pelos cotovelos sobre sonhos e realidades paralelas, apesar de o condutor se manter mudo. A viagem acaba num cruzamento, a tarifa é paga e, num daqueles acasos bizarros, outro carro atropela uma velhota no mesmo sítio e continua a sua marcha. As reacções dos espectadores são variadas, a câmara vira 180° e o tal carro está a estacionar no fundo da rua, depois de ter dado a volta ao quarteirão. O condutor passa a ser a personagem principal. A cada esquina, a cada encontro conhecemos alguém novo que toma conta do filme e tenta (nem sempre com sucesso, é verdade) captar a nossa atenção com as conversas do mais aleatório imaginável.

O verdadeiro Slacker é a câmara, que deambula pela cidade sem destino, sem horários, sem compromissos. Apenas consigo encontrar precedentes para esta sensação de liberdade total em Easy Rider. Tanto um como outro adquiriram, com o tempo, um travo de extravagância anacrónica, mas, quanto mais não seja, continuam a ser objectos fascinantes exactamente por nos transportarem para outra dimensão. Falamos tantas vezes no Portugal profundo, é-nos próximo e sabemos que, longe do litoral, existe um país diferente, mas a América profunda também tem imensos contrastes que, regra geral, só conhecemos através do cinema. Mais do que os seus contemporâneos, Linklater oferece outro olhar sobre o mundano.

7/10

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

Cape Fear (Martin Scorsese, 1991)


O primeiro dos dois remakes da carreira de Martin Scorsese, Cape Fear é a história de um violador que, ao fim de 14 anos de prisão, é libertado e toma como tarefa aterrorizar, de forma tão legal e sorrateira quanto possível, a família do seu antigo advogado, que terá sido profissionalmente incorrecto ao defender o seu caso de forma defeituosa propositadamente. Robert de Niro e Nick Nolte substituem Gregory Peck e Robert Mitchum, os protagonistas originais em 1962, que, ainda assim, têm cameos na nova versão.

Este é talvez um dos mais genéricos trabalhos do realizador italo-americano - com isto quero apenas dizer que Cape Fear se insere mais facilmente num género do que um Taxi Driver, um Raging Bull ou um The King Of Comedy, porque de banal, obtuso ou previsível tem pouco. O argumento é muito preciso e conciso, sempre focado nas formas cada vez mais ameaçadoras planeadas pelo criminoso Max Cady para levar ao extremo Sam Bowden, um senhor doutor respeitado e bem vestido, com muitos telhados de vidro.

Mentirosos compulsivos, por vezes com sentimentos de culpa, por vezes destinatários de actos de vingança violenta, são recorrentes nos filmes de Scorsese e neste tomam o palco principal. Cady educou-se sobre a lei e a bíblia aquando da sua encarceração, sabe o mal que Bowden lhe fez, quantos anos podia ter feito a menos, a quantas lutas e sessões de sodomia podia ter escapado se tivesse sido bem defendido, e sabe também que alguém tem de fazer os pecadores pagarem, olho por olho, dente por dente.

Primeiro desaparece o cão da família, depois a amante do advogado aparece desfigurada... mas o mais assustador é a atenção que o ex-presidiário começa a prestar à filha adolescente do casal, Danielle. Cady aproveita-se da sua inocência e hormonas voláteis para a seduzir. Num momento de um desconforto épico, ele faz-se passar pelo novo professor de teatro dela e manipula-a até lhe despertar a sexualidade ao ponto de a pôr a chupar-lhe o polegar. Ele afasta-se de seguida - ainda é só um aviso para o pai.

Repressão sexual é outra realidade presente. A jovem Juliette Lewis é sensualizada ao máximo, apenas ultrapassada por Jodie Foster em Taxi Driver. Num lar em que as infidelidades e as discussões no leito abundam, a descoberta do corpo pode ser um escape. É isso que Cady tenta explorar, até porque sabe que Sam naturalmente o condenará. Será essa repressão também explicação para instintos destrutivos? Que papel representa a religião nesse cenário? Perguntas freudianas que vêem de Mean Streets e The Last Temptation Of Christ.

No clímax, o inevitável confronto físico, mas, nele, uma constatação invulgar: nem prestes a ver a filha e esposa serem estupradas por um psicopata a personagem de Nolte consegue deixar de ser absolutamente patética, preferindo o conformismo à acção. À mercê da natureza, um milagre acontece e uma tempestade abana o barco onde se encontram. A montagem de Thelma Schoonmaker é perfeita ao transmitir a estranheza da situação. Se a família se safa, ainda bem, mas a cobardia de Sam não merece a nossa preocupação.

É nisto que Scorsese se engrandece, na profunda compreensão do verdadeiro alcance de certos caracteres e atitudes de morais questionáveis, na revelação furiosa do lado mais negro da mesquinhez, da traição e da desonestidade, que devemos evitar quando vivemos em sociedade e estamos em família ou entre amigos, senão o sangue fica nas nossas mãos e podemos ser mais perigosos para nós mesmos que qualquer outro factor externo. Talvez chegar à essência com tanta clareza motive tanta boa interpretação.

Aqui, entre Nolte, Lewis ou De Niro é difícil dizer quem está mais em sintonia com estes temas, e isto tudo sem falar do estilo irrepreensível do filme, pejado de pequenos movimentos de câmara que sub-repticiamente plantam nervosismo no nosso cérebro e coberto por um trabalho de fotografia em realismo e em negrume muito semelhante ao de Michael Ballhaus. Cape Fear foi a sétima colaboração de uma das mais lendárias duplas do cinema, Scorsese e De Niro. Provavelmente, será a mais subestimada.

9/10