sexta-feira, 24 de abril de 2015

Lo Sceicco Bianco (Federico Fellini, 1952)

Quando chegou a altura de saltar para a cadeira de realizador, Federico Fellini contava já com um extenso currículo como argumentista, tendo inclusive colaborado com Roberto Rossellini na magnum opus do neorrealismo Italiano, Roma, Città Aperta (1945). Em 1952 estreia o seu segundo filme, Lo Sceicco Bianco, depois de conhecer a sua mulher para a vida, Giulietta Masina, depois de grandes complicações financeiras com Luci Del Varietà (1950), depois de desavenças com Michaelangelo Antonioni quanto ao argumento deste novo projecto… Esta última nota é muito reveladora, porque Lo Sceicco Bianco desenvolve-se como uma versão cómica, a juntar ao final feliz, de La Notte (1961) – com um olhar acutilante, apesar das diferenças de tom, ambos os filmes se focam na dinâmica de um casal, pondo marido e mulher juntos no menor número possível de cenas.

Apesar de ter passado por muitas mãos, Lo Sceicco Bianco é tão característico do divagante e nostálgico Fellini como La Notte do inexorável Antonioni. Wanda, uma ingénua recém-casada, em lua-de-mel com Ivan, em Roma, está decidida a aproveitar a sua passagem pela capital Italiana para privar com o seu ídolo Fernando Rivoli, estrela de uma fotonovela (é verdade, estas coisas existiam há 50 anos e o pessoal adorava!). Ela acaba numa praia a quilómetros da cidade, tentada pela infidelidade, ele desespera por a encontrar enquanto tenta esconder da sua família o desaparecimento da esposa, sem nunca se esquecer que têm uma audiência com o Papa no dia seguinte à qual não devem faltar.

Tal como em La Notte, o mais importante será perceber se estes dois não só se merecem um ao outro como se se amam. Ao contrário de La Notte, em Lo Sceicco Bianco sucedem-se não planos estáticos cheios de figuras solitárias e obras de arquitectura enquadradas com o mais elevado rigor, mas movimento, grandes turbas e situações hilariantes com personagens extravagantes e equívocos dolorosamente humanos. Num momento que só resultaria num filme de Fellini, o tal Xeique Branco do título é-nos apresentado a divertir-se num baloiço, talvez a uma dezena de metros do chão, preso à copa de um pinheiro bravo, donde salta com naturalidade para cumprimentar a protagonista. Como num pedaço de um sonho, magia de cinema – e a magia, quando é bem feita, deixa-nos sempre de sorriso na boca e palmas nas mãos.

Devo dizer que acho que La Notte é um filme fabuloso e, por razões completamente opostas, passarei a usar o mesmo adjectivo para descrever Lo Sceicco Bianco, o que considero ser um testemunho da qualidade de ambos os seus autores. Acima de tudo é claro que Fellini sabia já muito bem o que queria dos seus filmes nesta altura e consegue imprimir, a espaços, uma atmosfera fantasista, sem ainda pôr completamente de lado a narrativa, como viria a fazer em 8 ½, Roma, La Città Delle Donne e por aí adiante. Masina tem uma aparição breve como Cabiria, a prostituta que viria a ganhar o seu próprio filme em 1957 (La Notti Di Cabiria). Lo Sceicco Bianco contém também uma linha que define para mim tudo o que Fellini representa: “o mundo real é o mundo dos sonhos”. Fico-me por aqui.

9/10

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Stazione Termini (Vittorio De Sica, 1953)

Que os italianos são uns grandes artistas, ninguém questiona. Seja qual for a disciplina para que nos viramos, de certeza que houve algum transalpino que nela se notabilizou de alguma forma. O cinema é um exemplo (duh). A arquitectura é outro, atestado pelos prémios Pritzker atribuídos a Aldo Rossi e Renzo Piano, se falarmos apenas nos tempos modernos. O fascismo impulsionou escolas e padrões estéticos que acabariam por ser de pouca dura nos anos 40 e a reconstrução em massa das cidades no pós-guerra foi um período ímpar para novas experiências. Uma obra transversal a essas convulsões sociopolíticas foi a estação ferroviária Termini, que passou por demolições com Mussolini e renovações posteriormente.

Por causa dessas contrariedades e por ser a maior situada na capital Roma, é um espaço público com uma personalidade única, que De Sica explora neste filme, como se fosse a verdadeira personagem principal, dentro da qual Jennifer Jones, Montgomery Clift e Richard Beymer (pré-puberdade e pré-West Side Story) são meros transeuntes. Um caso entre uma americana casada e um playboy que se perde de amores instantaneamente por quem não devia, é o mote para este pequeno drama quase em tempo real. Mary espera o comboio que a vai levar para longe da tentação, mas Giovanni não quer abdicar da oportunidade única que pensa ter encontrado para ser feliz ao lado de uma mulher.

O tom contido, nocturno e intimista remete para Brief Encounter, bem como a história da aventura extra-conjugal, sendo igualmente recompensador a nível de interpretações e química. Aqui, o relógio está sempre a relembrar a brevidade da relação, mesmo pelo meio das indecisões de Mary e os contratempos inusitados que o romantismo e o desespero geram, incluindo bagagens perdidas, violência física e uma passagem pela esquadra da polícia, sabemos que o tempo é curto, incontornável, diáfano, ao contrário dos subterfúgios que um e outro inventam para ficarem juntos. Desculpem a linha de novela da TVI, mas perceber que temos de abrir mão do amor da nossa vida é das coisas mais tristes que há.

Por outro lado, que belo local para tal ponto final. A Termini de hoje retém o amplo hall de entrada, no entanto o aspecto imaculado de outrora já se foi. Claro que a fotografia a preto-e-branco irrepreensível, especialmente na captura de raios de luz artificial, que os postes e as colunas multiplicam por difusão, ajuda. A classe intemporal de Jones e Clift também. São duas masterclasses de expressão facial e corporal em situações de dúvida e atracção. A juntar aos diálogos de Truman Capote e ao guarda-roupa desenhado por Christian Dior, este é o filme mais modernista de um dos maiores artistas italianos, Vittorio De Sica. E o mais subestimado.

8/10

quarta-feira, 22 de abril de 2015

The Flowers Of St. Francis (Roberto Rossellini, 1950)

Apesar das extensas nuances bíblicas presentes no neorrealismo italiano, poucos realizadores integrantes desse movimento se aventuraram a retratar figuras católicas. Temos The Gospel According To St. Matthew de Pasolini, que considero, à revelia da opinião generalizada, estar longe de ser representativo da sua carreira, apesar do retrato quasi-anarquista, proto-hippie de Jesus, tal como o próprio autor, e longe de ser dos mais envolventes, repleto de planos repetidos e amadorismo na montagem, apesar de ser baseado num livro com uma estrutura obviamente episódica, dividido em capítulos e versículos. Temos também The Flowers Of St. Francis, sobre o frade italiano que inspirou o nome do 266º Papa, o actual Bergoglio.

Na carreira de Rossellini, as ruínas do conflito armado mais devastador da História começam a dar lugar a ruínas históricas, mas a sua contemporaneidade nunca deixa de ser relevante. Na solidariedade do pós-guerra e na inconstância das relações amorosas e matrimoniais, algo se perde irremediavelmente, ficando pedras pelo caminho para contar a história, e algo nasce, com um optimismo ímpar ou, quanto mais não seja, por puro instinto de sobrevivência (excluindo Germany, Year Zero e o seu alerta para falsas esperanças). 1950 foi o ano mais religioso do realizador: Stromboli caminha para um milagre, The Flowers Of St. Francis segue os passos de um santo e dos primeiros tempos da sua Ordem.

Composto por nove capítulos que se desenrolam como pequenas parábolas derivadas das aventuras e desventuras de São Francisco e dos que o seguem, este filme transporta-nos para a região de Assis no séc. XIII, onde eles se instalam com pequenas cabanas depois de uma tempestade (introdução belíssima pela chuva e pela lama). O estilo jocoso e desprendido da personagem principal influencia as outras personagens e o espectador. Por várias vezes, as melhores intenções originam mal-entendidos cómicos, que são posteriormente corrigidos com orientação para a modéstia e para a fé em Deus. Fica na memória a distribuição das posses do grupo aquando da sua separação.

Enquanto agnóstico, não posso deixar de notar o masoquismo que esta entrega total implica e que sobressai em determinadas situações. Se serem escorraçados dum abrigo ou infiltrarem-se numa casa com o intuito de pregarem a quem não os quer receber e os expulsa com violência é sinal de que estão a fazer algo certo, definitivamente não me posso rever na religião. Contudo, o episódio que parece mais deslocado é o encontro entre o frade Ginepro e o mercenário Nicolaio, cheio de chega-para-lá e respirações ofegantes. Awkward! No cômputo geral, é um filme bem engendrado, rodado fora dos habituais cenários urbanos, mais óbvio quanto a algumas preocupações de Rossellini e quanto ao seu sentido de humor.

7/10

Manuel De Sica - Il Viaggio

The Voyage (Vittorio De Sica, 1974)

sábado, 18 de abril de 2015

The Red House (Delmer Daves, 1947)

Quando Edward G. Robinson é mencionado, automaticamente vêm à memória gangsters imperscrutáveis e homens honestos arrastados para espirais de crime e mentira, ou seja, estamos a falar de uma figura que não só marcou o film-noir como excedeu os limites da versatilidade no género, pois foi capaz de interpretar com igual qualidade papéis de naturezas antagónicas, uns secundários, outros principais.

O isco que me puxou até The Red House foi vê-lo num ambiente campestre a fazer de agricultor, muito longe do fumo dos charutos, da noite urbana e das femme fatale de Double Indemnity, Key Largo ou The Woman In The Window. Apenas a lengalenga dum passado que não desaparece e volta para assombrar o presente pode remeter para esses cenários, todo o resto tem um sabor diferente.

Este thriller rural começa com uma introdução narrada algo condescendente, que não deixa de transmitir uma paz de espírito que, claro, será corrompida pela história. Também somos apresentados ao casalinho adolescente Meg e Nath, que começam como apenas colegas de turma, até porque o segundo já tem uma namorada que dá bastante trabalho.

Trabalho, num sentido mais literal, é o que o jovem procura junto do pai adoptivo de Meg, que precisa de ajuda na quinta, especialmente tendo em conta que uma das suas pernas é uma prótese de madeira e que a idade já não perdoa. Pete parece bastante afável e cordial, até Nath decidir andar pelo bosque contíguo, primeiro como atalho, depois por curiosidade.

O velho tenta um pouco de tudo para afastar quem quer que seja do extenso arvoredo, vocifera maldições infundadas, faz ameaças e chega a manter um guarda com demasiada vontade de disparar a sua espingarda. Claro que tudo isto motiva ainda mais uma adolescente para fazer o que não deve, por muito bem-educada e submissa que seja. Conversas sobre uma casa vermelha abandonada atraem Meg e Nath ainda mais.

À medida que a desobediência da rapariga cresce, também a memória de um crime que ficou por resolver se agiganta e degrada a saúde mental de Pete. A presença de Edward G. Robinson é das mais ambíguas da história do cinema – quem espera que as feições e a baixa estatura, adequadas a um avô amável e calmo, possam esconder impulsos assustadores? Quando ele arregala os olhos, tudo passa a estar em dúvida.

Quando vemos a tal casa pela primeira vez temos a impressão de que não pode ser doutra cor para além de vermelho, apesar da fotografia a preto-e-branco. A ventania do planalto e o tema de Miklos Rosza assaltam os ouvidos. The Red House é surpreendente? Nem por isso, mas é eficaz a jogar com os sentidos e tem argumentos suficientes para merecer maior destaque do que costuma ter.

8/10

terça-feira, 14 de abril de 2015

Roberto Rossellini e as Ruínas

Rome, Open City (1945)

Paisan (1946)

Germany, Year Zero (1948)

Stromboli (1950)

The Flowers of St. Francis (1950)

Journey to Italy (1956)

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Scarlet Street (Fritz Lang, 1945)

Com o surgimento do nazismo na Alemanha e a sua expansão forçada para territórios vizinhos, muitos artistas e técnicos do cinema europeu, em especial aqueles com origens judaicas, decidiram ou tiveram a oportunidade de emigrar para Hollywood. Billy Wilder, Otto Preminger e Fritz Lang são alguns dos exemplos mais óbvios; curiosamente, os três viriam a deixar a sua marca no film-noir, um género notório por mascarar as frustrações da sociedade americana sob histórias de crime, anti-heróis cínicos e um niilismo ubíquo.

Lang voltou a ele imensas vezes, sem grandes flutuações em qualidade. Poucos se podem gabar de ter construído duas carreiras com sucesso, em lugares temporais e geográficos diferentes. Antes de emigrar para Paris em 1934, o realizador alemão puxou o expressionismo aos limites em Dr. Mabuse The Gambler, Metropolis ou M, fundindo os pilares estilísticos estabelecidos com narrativas complexas. Chegado à Califórnia, aperfeiçoa a sua subtileza com Fury e por aí adiante.

Em breve chegaria uma dupla de filmes onde é usado praticamente o mesmo elenco e que solidifica as bases de certos lugares recorrentes do film-noir: The Woman In The Window e Scarlet Street, que contam com Edward G. Robinson no papel de um homem de meia-idade que, por acidente no primeiro e ingenuidade no segundo, se vê a contas com situações para as quais não está preparado, nomeadamente roubo, omissão de factos à polícia, roubo de identidade, chantagem e homicídio.

Enquanto The Woman In The Window finda com um suspiro de alívio, Scarlet Street acaba num tom deprimente. Caixa dum milionário do têxtil, Christopher Cross já deu provas de ser confiável e tem um emprego estável. Só que, a nível pessoal, por muito que o reprima, é palpável o negativismo. Preso num casamento sem sentido em que a sua masculinidade é ameaçada diariamente, baixo e pouco atraente, pinta horas a fio, sonhando com uma carreira como artista e com o amor duma mulher jovem e bela.

Kitty March entra em cena e é tudo o que ele desejava… não fosse o facto de se colar a Chris apenas por achar que ele é um pintor reconhecido e lhe querer sacar umas coroas. É uma verdadeira femme fatale com más intenções, que Joan Bennett interpreta com sensualidade e convicção e que, por sua vez, é também manietada por Johnny (Dan Duryea), um vigarista de meia-tigela. O enredo é bastante espesso e assenta na ideia de que nem alguém honesto como Chris é de ferro.

Além disso, distancia-o dos filmes de crime da altura o facto de a personagem principal não sofrer consequências. Os erros de Chris são imputados a Johnny, o que traz alguma satisfação sórdida, mas não é verdadeiramente justo. Partidas do destino que deixam um sabor amargo. Estes dilemas morais e esta psicologia da corrupção são temas caros a Lang. A fotografia é, como sempre, excelente. O que seria do film-noir sem a sensibilidade europeia?

8/10

The Woman In The Window (Fritz Lang, 1944)

Com o surgimento do nazismo na Alemanha e a sua expansão forçada para territórios vizinhos, muitos artistas e técnicos do cinema europeu, em especial aqueles com origens judaicas, decidiram ou tiveram a oportunidade de emigrar para Hollywood. Billy Wilder, Otto Preminger e Fritz Lang são alguns dos exemplos mais óbvios; curiosamente, os três viriam a deixar a sua marca no film-noir, um género notório por mascarar as frustrações da sociedade americana sob histórias de crime, anti-heróis cínicos e um niilismo ubíquo.

Lang voltou a ele imensas vezes, sem grandes flutuações em qualidade. Poucos se podem gabar de ter construído duas carreiras com sucesso, em lugares temporais e geográficos diferentes. Antes de emigrar para Paris em 1934, o realizador alemão puxou o expressionismo aos limites em Dr. Mabuse The Gambler, Metropolis ou M, fundindo os pilares estilísticos estabelecidos com narrativas complexas. Chegado à Califórnia, aperfeiçoa a sua subtileza com Fury e por aí adiante.

Em breve chegaria uma dupla de filmes onde é usado praticamente o mesmo elenco e que solidifica as bases de certos lugares recorrentes do film-noir: The Woman In The Window e Scarlet Street, que contam com Edward G. Robinson no papel de um homem de meia-idade que, por acidente no primeiro e ingenuidade no segundo, se vê a contas com situações para as quais não está preparado, nomeadamente roubo, omissão de factos à polícia, roubo de identidade, chantagem e homicídio.

Enquanto Scarlet Street acaba num tom deprimente, The Woman In The Window finda com um suspiro de alívio. Professor de criminologia, Richard mantém-se preso ao trabalho enquanto a esposa e os filhos vão gozar férias sem ele. Sozinho na cidade, passa o pouco tempo livre que tem num clube de cavalheiros de classe alta. Fascinado com um retrato exposto na montra da loja ao lado, qual não é o seu espanto quando, certa noite, a mulher do quadro aparece reflectida no vidro por se encontrar exactamente ali, no passeio.

Invadido por uma súbita vontade de satisfazer a fantasia que se está a tornar realidade, o professor e Alice (Joan Bennett) deambulam juntos, acabando na casa dela. Quando o ambiente começa a tornar-se mais sexual, algo acontece: um dos amantes de Alice entra de rompante e começa uma luta. Richard espeta-lhe uma tesoura, matando-o. As personagens tentam congeminar um plano cauteloso para que este infortúnio não lhes estrague a vida, mesmo tendo sido em autodefesa. Decidem largar o corpo no campo.

Estou a resumir os 40 minutos iniciais sem lhes conseguir fazer devida justiça. Com isto quero dizer que é uma das mais longas e geniais set-pieces que já vi. O argumento estabelece o desejo carnal, Lang desenvolve-o com uma parcimónia e uma atenção ao detalhe irrepreensíveis e Robinson é honesto mas curioso nas quantidades perfeitas. O ambiente onírico e soturno é de cortar a respiração. Como se isto não fosse suficiente, o resto do filme é um espelho diurno da acção, como noutro dos meus favoritos, Eyes Wide Shut.

Quando o corpo é encontrado, o magistrado Frank Lalor (o grande Raymond Massey), amigo de Richard e sócio do mesmo clube, toma conta do caso e revisitamos os lugares da noite anterior. Estas ironias do destino polvilham The Woman In The Window com um nível de tensão peculiar, brincalhão até (veja-se o cómico escuteiro que passeava no bosque). Regra geral privilegio o negativismo e deveria dar primazia a Scarlet Street, no entanto acho este ainda mais criativo e bem filmado. Lang americanizado e a América sujeita ao “tratamento Lang” no seu melhor.

9/10

quarta-feira, 8 de abril de 2015

Ikiru (Akira Kurosawa, 1952)

Um pensamento que não consigo afastar é o de Umberto D. (Vittorio De Sica, 1952) ter saído no mesmo ano que um filme tão manipulador, que dá tantas voltas para tentar fazer o público sentir pena do seu protagonista e que tropeça nos seus próprios truques como Ikiru. Umberto não precisa de pena; é pobre, é arrogante, é solitário. Personifica a dificuldade de envelhecer num país a tentar recuperar duma guerra violenta, que dividiu populações e estropiou famílias; no fundo, a dureza da vida. É um homem que nos toca por ser real e contido, num filme que nos toca porque não está incessantemente a tentar transmitir uma mensagem ou a degradar a sua personagem principal para que fiquemos preocupados. Umberto não precisa de ninguém, atreve-se a sobreviver, mesmo que no fim continue como no início: acompanhado apenas pelo seu cão. Umberto D. é um estado de espírito universal numa época muito específica. O homem é ele e a sua circunstância, dizia Ortega Y Gasset. É isso um estudo de carácter.

Já Watanabe é um velho desinteressante com olhos de cachorrinho. Kurosawa desconhece o significado da palavra subtileza, limita-se a ilustrar texto e a tocar música lúgubre, sendo que o texto nem sequer é muito bom. Assim que o filme abre um narrador está já a disparatar sobre o que vai ser mostrado mais à frente. Não, não, não. Não nos próximos 10 minutos ou assim. Basicamente todo o conceito geral do filme. “Watanabe tem cancro. Watanabe vai morrer. Mas ele ainda não sabe, por isso primeiro vamos vê-lo a ir ao hospital. Ok? Então vamos lá começar isto.” Lembra as reformadas que compram a Maria para saber o que vai acontecer nas 5 horas semanais daquela telenovela que tanto gostam e que vão ver de qualquer forma. Enfim. Carpe diem. Ah, que mensagem bela com que Ikiru nos vai presentear.

Então chegamos ao hospital. O médico de Watanabe, por qualquer razão que escapará ao intelecto mais expedito, não lhe diz do que padece, mas podemos acreditar noutro velho, que aparentemente sofre de algum tipo de retardação mental, quando nos informa que, pelo diagnóstico falso do médico (o que parece ser recorrente), o nosso protagonista vai morrer dentro de 6 meses a 1 ano de cancro do estômago. Watanabe, confrontado com a sua mortalidade, reflecte na vacuidade da sua vida enquanto burocrata na câmara municipal (a sua dedicação ao trabalho é tão extrema que nunca faltou um só dia em quase 30 anos de serviço) e decide gastar o dinheiro que amealhou religiosamente ao longo do tempo. Quer viver. Quer sentir-se vivo. Somos levados a crer que é mau beber, que é mau ver striptease, que é mau dar confiança a estranhos, especialmente aqueles (como um escritor que Watanabe conhece num bar) que, diligentemente, tentam trazer algum divertimento sem se aproveitarem de nós.

Watanabe vagueia pelo submundo urbano nocturno e nada consegue afastar a sua mente da doença. Isso é compreensível. O senhor quer, apesar de tudo, manter alguma dignidade. Por isso... começa a seguir uma miúda, colega de trabalho, aí 30 anos mais nova do que ele. Será possível um filme intencionalmente dar mais sinais contraditórios que Ikiru? É difícil. As personagens que rodeiam Watanabe também não têm profundidade, são meros peões que berram e fazem uma série de ruídos estranhos. Os estereótipos que se associam às línguas orientais também vêm de filmes como este e não só do género das artes marciais. Basta pegar numa cópia de The Story Of The Late Chrysanthemums (Kenji Mizoguchi, 1939), Tokyo Story (Yasujiro Uso, 1953) ou Sound Of The Mountain (Mikio Naruse, 1954) para perceber que a cultura japonesa tem muito que se lhe diga em termos de quietude, beleza, expressividade e emoções. Aqui até o filho é um ingrato que apenas quer sacar mais umas coroas ao pai.

O pior é que o coitado lá morre, sem denunciar a sua maleita, e ainda temos uma hora pela frente, durante a qual Kurosawa nos pede para seguirmos todos os secundários nas suas tentativas de perceber porque é que Watanabe acaba a procurar uma vã redenção ao ajudar a construir um parque infantil. Mas o espectador está adiantado e sabe a resposta, ele tinha cancro e quis fazer algo significativo antes de ir desta para melhor! Como um pai a atafulhar comida na boca do seu rabugento rebento, Kurosawa insiste no óbvio através de moralismos básicos; não devemos perder o nosso tempo neste planeta com futilidades, devemos viver cada momento, Watanabe foi um mártir e todos o devem reconhecer como tal. Ninguém precisa de ser alimentado à força com juízos de valor. Precisamos de perspectiva. Apenas isso já teria sido interessante.

2/10

domingo, 5 de abril de 2015

Inauguração da sala IMAX no MarShopping

Na passada quarta-feira tive a possibilidade de marcar presença na estreia da nova sala IMAX nos cinemas do MarShopping, em Matosinhos. Sendo apenas a segunda sala construída de raiz para suportar este formato de filme em Portugal, e como eu nunca fui visitar a do Centro Comercial Colombo em Lisboa, não pude deixar passar a oportunidade.

A experiência é incrível. O tamanho do ecrã, a curvatura, a definição da imagem, mesmo nos cantos, a multitude de sons, tudo contribui para uma maior imersão no filme em exibição. Nada melhor do que uma palhaçada de alta tensão como o Furious 7, com um exagero de explosões e perseguições, para realçar estas qualidades.



quinta-feira, 2 de abril de 2015

O Pintor e a Cidade (Manoel de Oliveira, 1956)

Apesar de não ser o maior fã do realizador, é impossível abordar o tema do Porto no cinema sem falar de Manoel de Oliveira e a verdade é que os seus documentários (integrais ou parciais), a tripla Douro, Faina Fluvial (1931), O Pintor e a Cidade (1956) e Porto da Minha Infância (2001), espaçados por muitas décadas, são um arquivo ímpar da evolução da cidade. Como tal, acabam por ser os meus momentos preferidos de toda a sua filmografia, por representarem, com tanto gosto e através de técnicas diferentes, seja num preto-e-branco mudo, pela justaposição de fotogramas e pinturas ou fundindo drama e memórias, o magnetismo do local onde ambos nascemos.

Para mim, o Porto é um estado de espírito, potente em indústria, turismo, cultura, gastronomia e arquitectura, onde um rio Património Mundial encontra o oceano Atlântico, e seis pontes, cada qual única à sua maneira, saltam as escarpas de uma margem para a outra, margens essas que se fortificaram para depois se abrirem ao mundo várias vezes ao longo da História, imprimindo no DNA das ruas e das pessoas uma inexpugnabilidade natural. Tudo isto, Manoel de Oliveira consegue revelar sem grandes tretas em O Pintor e a Cidade. Há uma necessidade de imputar vanguardismo sobre o classicismo das tradições, dos edifícios e das mentalidades: nos anos 50, barcos rabelos conviviam com barcos a vapor, as pontes de ferro D. Luís e D. Maria Pia do séc. XIX acolhiam os comboios e eléctricos do séc. XX e o futebol enchia o moderno estádio das Antas tal como uma banda filarmónica povoava o Jardim de S. Lázaro, o mais antigo da cidade; nos dias de hoje podemos parar num Costa Coffee junto da barroca Torre dos Clérigos, ver cruzeiros modernos passar ao lado dos mesmos rabelos de há trezentos anos e atravessar a ponte D. Luís de metro.

Numa toada “meta” invulgar para a época, a visão de Manoel de Oliveira é direccionada pela de António Cruz, que seguimos silenciosamente por vários pontos, e essa confiança é bem depositada: o Porto é cenário de realismo-mágico e as aguarelas do pintor têm o mesmo registo. Quem conhece, pode ainda entreter-se com o jogo do “antes e agora”: a antiga configuração elipsoidal da Praça da Liberdade, o cinema Batalha aberto, a EFANOR, a Praça da Ribeira sem cubo, a esquina da Rua Mouzinho da Silveira e a Avenida Dom Afonso Henriques com os mesmos sinais “VESTIR BEM E BARATO SÓ AQUI” nas varandas, entre outros. Quem não conhece, apreciem. From Porto with lobe, carago.

9/10