Com o surgimento do nazismo na
Alemanha e a sua expansão forçada para territórios vizinhos, muitos artistas e
técnicos do cinema europeu, em especial aqueles com origens judaicas, decidiram
ou tiveram a oportunidade de emigrar para Hollywood. Billy Wilder, Otto
Preminger e Fritz Lang são alguns dos exemplos mais óbvios; curiosamente, os
três viriam a deixar a sua marca no film-noir, um género notório por mascarar as
frustrações da sociedade americana sob histórias de crime, anti-heróis cínicos
e um niilismo ubíquo.
Lang voltou a ele imensas vezes,
sem grandes flutuações em qualidade. Poucos se podem gabar de ter construído
duas carreiras com sucesso, em lugares temporais e geográficos diferentes. Antes
de emigrar para Paris em 1934, o realizador alemão puxou o expressionismo aos
limites em Dr. Mabuse The Gambler, Metropolis ou M, fundindo os pilares
estilísticos estabelecidos com narrativas complexas. Chegado à Califórnia,
aperfeiçoa a sua subtileza com Fury e por aí adiante.
Em breve chegaria uma dupla de
filmes onde é usado praticamente o mesmo elenco e que solidifica as bases de
certos lugares recorrentes do film-noir: The Woman In The Window e Scarlet
Street, que contam com Edward G. Robinson no papel de um homem de meia-idade
que, por acidente no primeiro e ingenuidade no segundo, se vê a contas com
situações para as quais não está preparado, nomeadamente roubo, omissão de
factos à polícia, roubo de identidade, chantagem e homicídio.
Enquanto Scarlet Street acaba num
tom deprimente, The Woman In The Window finda com um suspiro de alívio.
Professor de criminologia, Richard mantém-se preso ao trabalho enquanto a
esposa e os filhos vão gozar férias sem ele. Sozinho na cidade, passa o pouco
tempo livre que tem num clube de cavalheiros de classe alta. Fascinado com um
retrato exposto na montra da loja ao lado, qual não é o seu espanto quando,
certa noite, a mulher do quadro aparece reflectida no vidro por se encontrar
exactamente ali, no passeio.
Invadido por uma súbita vontade
de satisfazer a fantasia que se está a tornar realidade, o professor e Alice
(Joan Bennett) deambulam juntos, acabando na casa dela. Quando o
ambiente começa a tornar-se mais sexual, algo acontece: um dos amantes de Alice
entra de rompante e começa uma luta. Richard espeta-lhe uma tesoura, matando-o.
As personagens tentam congeminar um plano cauteloso para que este infortúnio
não lhes estrague a vida, mesmo tendo sido em autodefesa. Decidem largar o
corpo no campo.
Estou a resumir os 40 minutos
iniciais sem lhes conseguir fazer devida justiça. Com isto quero dizer que é
uma das mais longas e geniais set-pieces que já vi. O argumento estabelece o
desejo carnal, Lang desenvolve-o com uma parcimónia e uma atenção ao detalhe
irrepreensíveis e Robinson é honesto mas curioso nas quantidades perfeitas. O
ambiente onírico e soturno é de cortar a respiração. Como se isto não fosse
suficiente, o resto do filme é um espelho diurno da acção, como noutro dos meus
favoritos, Eyes Wide Shut.
Quando o corpo é encontrado, o
magistrado Frank Lalor (o grande Raymond Massey), amigo de Richard e sócio do
mesmo clube, toma conta do caso e revisitamos os lugares da noite anterior. Estas ironias do destino polvilham The Woman
In The Window com um nível de tensão peculiar, brincalhão até (veja-se o cómico
escuteiro que passeava no bosque). Regra geral privilegio o negativismo e
deveria dar primazia a Scarlet Street, no entanto acho este ainda mais criativo
e bem filmado. Lang americanizado e a América sujeita ao “tratamento Lang” no
seu melhor.
9/10
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