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terça-feira, 25 de novembro de 2014

La Planète Sauvage (René Laloux, 1973)

Ao longo da minha vida já vi muitos filmes estranhos. La Planète Sauvage é um dos que mais sobressai e tem, no mínimo, lugar garantido no pódio. Só para dar uma ideia do que estou a falar, isto começa com uma mulher em trajes do paleolítico a correr desalmadamente com um bebé entre os braços por uma floresta espinhosa, até que chega a uma colina e uma mão azul gigante lhe dá um sopapo e ela cai. A cena repete-se, de seguida pedras esponjosas rodeiam-na, setas caem à sua volta, e acaba por ser agarrada, elevada a uma altura considerável e largada, estatelando-se no chão. De uma distância maior, verificamos que foram três crianças alienígenas com aspecto aquático (apesar de não se ver uma gota de água em lado nenhum), barbatanas no lugar das orelhas e 20 metros de altura que a mataram, deixando o filho humano (aqui denominados Oms) órfão.

O jovem Tiwa adopta-o, como alguém escolheria uma formiga para animal de estimação, pois no planeta dos Traags somos considerados uma espécie sem inteligência e que se multiplica rapidamente. A animação de La Planète Sauvage, produzido na Checoslováquia, um país onde o talento para o género ainda não ocupa o lugar devido na História do cinema, é tão psicadélica como a banda sonora roqueira de Alain Goraguer. Paisagens ermas e pejadas de plantas invulgares são o habitat natural de uma civilização intelectualmente avançada, mas dominada pelos dogmas da Meditação.

Apesar das dificuldades em se perpetuarem, acham-se superiores e nada querem aprender com os humanos, chegando a ser desconfortável a forma como os subjugam, claramente subestimando-os. Quando o bebé, entretanto baptizado de Terr, se torna adulto, foge com uns phones que educam os Traggs jovens, gravando conhecimento directamente no cérebro, e encontra um grupo de dissidentes que habita num parque. Por uma vez, os humanos são os ameaçados e têm de encontrar uma forma de ganhar o seu espaço e direitos, nem que tal signifique uma guerra com aparente disparidade de recursos. Pelo meio de tanto sci-fi surrealista está essa premissa continuamente actual de luta contra os preconceitos e a marginalização. A originalidade de La Planète Sauvage é inegável, e, mesmo nem sempre me sentir captivado por um estilo tão bizarro a todos os níveis, a criatividade do realizador não deixa de surpreender.

7/10

domingo, 24 de novembro de 2013

A Promessa (António de Macedo, 1973)

Uma carroça atravessa as dunas e chega a uma aldeia piscatória, perdida na areia e no tempo. Dois ciganos procuram ajuda médica para o irmão que foi esfaqueado, mas ninguém nas redondezas está qualificado para os ajudar a esse nível. O sacristão da capela, José, e a família oferecem-lhe asilo e comida, que acreditam ser suficiente, já que as feridas não parecem ameaçadoras. Enquanto esperam por melhorias, os outros instalam-se com uma tenda numa praia próxima e rapidamente se empenham em sacar dinheiro vendendo relíquias pagãs aos locais, aproveitando-se da sua pouca instrução e da sua fé, que tanta preponderância tem sempre nestas comunidades.

A presença dos estrangeiros deixa de inspirar desconfiança para passar a representar medo quando estes raptam uma jovem e desaparecem, não se coibindo de deixar o irmão para trás, que desde o início demonstra ter outro tipo de morais e atitudes. À medida que vai recuperando as suas forças prepara-se para os confrontar, nem que isso implique violência, estabelece amizade com quem o acolheu e muda-se para um moinho velho, talvez por querer a distância que a sua etnia normalmente procura, talvez por não querer estorvar e muito menos dar azo a burburinhos sobre a ajuda que recebe de Maria enquanto o marido José está no mar, especialmente quando toda a gente sabe da promessa…

Nas vésperas do seu casamento, o casal fez um voto de castidade, na esperança de o pai dele conseguir voltar a terra durante uma tempestade particularmente violenta. Um ano volvido, a falta de envolvimento físico parece ter conduzido a relação para um impasse. Grato a Deus por ter afastado a tragédia, ele não pondera voltar atrás com a sua palavra, nem mesmo tendo o aval do jovem padre João, que considera mais importante salvar o matrimónio. A religião é indissociável da aldeia, mas os sacrifícios em nome dela são feitos de claras contradições terrenas. O padre antigo admite, por exemplo, ao mais novo que até a igreja se rege pelo dinheiro e há que aproveitar a festa de S. Pedro para ganhar algum. Qual é a diferença para os ciganos?

Como Pasolini, António de Macedo consegue criar um mundo muito próprio, ermo e ventoso, que quase parece ter sido fabricado para o filme. Os travellings vacilantes e a mistura de som, com os diálogos de umas cenas a intrometerem-se noutras, criam um sentimento visceral de confusão e incerteza que ultrapassa os desenvolvimentos da história e reflecte a postura católica típica relativamente à sexualidade. O realizador, no último plano, estaria, acredito, consciente da polémica que certas imagens provocariam e joga com a forma como a vilificação da nudez no cinema chega a sobrepor-se, infamemente, ao impacto de uma morte, como se o coito fosse um pecado maior que o assassínio. A Promessa é inconfundivelmente português.

8/10