O primeiro dos dois remakes da carreira de Martin Scorsese, Cape Fear é a
história de um violador que, ao fim de 14 anos de prisão, é libertado e toma
como tarefa aterrorizar, de forma tão legal e sorrateira quanto possível, a
família do seu antigo advogado, que terá sido profissionalmente incorrecto ao
defender o seu caso de forma defeituosa propositadamente. Robert de Niro e Nick
Nolte substituem Gregory Peck e Robert Mitchum, os protagonistas originais em
1962, que, ainda assim, têm cameos na nova versão.
Este é talvez um dos mais genéricos trabalhos do realizador italo-americano
- com isto quero apenas dizer que Cape Fear se insere mais facilmente num
género do que um Taxi Driver, um Raging Bull ou um The King Of Comedy, porque
de banal, obtuso ou previsível tem pouco. O argumento é muito preciso e
conciso, sempre focado nas formas cada vez mais ameaçadoras planeadas pelo
criminoso Max Cady para levar ao extremo Sam Bowden, um senhor doutor
respeitado e bem vestido, com muitos telhados de vidro.
Mentirosos compulsivos, por vezes com sentimentos de culpa, por vezes
destinatários de actos de vingança violenta, são recorrentes nos filmes de
Scorsese e neste tomam o palco principal. Cady educou-se sobre a lei e a bíblia
aquando da sua encarceração, sabe o mal que Bowden lhe fez, quantos anos podia
ter feito a menos, a quantas lutas e sessões de sodomia podia ter escapado se
tivesse sido bem defendido, e sabe também que alguém tem de fazer os pecadores
pagarem, olho por olho, dente por dente.
Primeiro desaparece o cão da família, depois a amante do advogado aparece
desfigurada... mas o mais assustador é a atenção que o ex-presidiário começa a
prestar à filha adolescente do casal, Danielle. Cady aproveita-se da sua
inocência e hormonas voláteis para a seduzir. Num momento de um desconforto
épico, ele faz-se passar pelo novo professor de teatro dela e manipula-a até
lhe despertar a sexualidade ao ponto de a pôr a chupar-lhe o polegar. Ele
afasta-se de seguida - ainda é só um aviso para o pai.
Repressão sexual é outra realidade presente. A jovem Juliette Lewis é
sensualizada ao máximo, apenas ultrapassada por Jodie Foster em Taxi Driver.
Num lar em que as infidelidades e as discussões no leito abundam, a descoberta
do corpo pode ser um escape. É isso que Cady tenta explorar, até porque sabe
que Sam naturalmente o condenará. Será essa repressão também explicação para
instintos destrutivos? Que papel representa a religião nesse cenário? Perguntas freudianas que vêem de Mean Streets e The Last Temptation
Of Christ.
No clímax, o inevitável confronto físico, mas, nele, uma constatação
invulgar: nem prestes a ver a filha e esposa serem estupradas por um psicopata
a personagem de Nolte consegue deixar de ser absolutamente patética, preferindo
o conformismo à acção. À mercê da natureza, um milagre acontece e uma
tempestade abana o barco onde se encontram. A montagem de Thelma Schoonmaker é
perfeita ao transmitir a estranheza da situação. Se a família se safa, ainda
bem, mas a cobardia de Sam não merece a nossa preocupação.
É nisto que Scorsese se engrandece, na profunda compreensão do verdadeiro
alcance de certos caracteres e atitudes de morais questionáveis, na revelação
furiosa do lado mais negro da mesquinhez, da traição e da desonestidade, que
devemos evitar quando vivemos em sociedade e estamos em família ou entre amigos,
senão o sangue fica nas nossas mãos e podemos ser mais perigosos para nós
mesmos que qualquer outro factor externo. Talvez chegar à essência com tanta
clareza motive tanta boa interpretação.
Aqui, entre Nolte, Lewis ou De Niro é difícil dizer quem está mais em
sintonia com estes temas, e isto tudo sem falar do estilo irrepreensível do
filme, pejado de pequenos movimentos de câmara que sub-repticiamente plantam
nervosismo no nosso cérebro e coberto por um trabalho de fotografia em realismo
e em negrume muito semelhante ao de Michael Ballhaus. Cape Fear foi a sétima
colaboração de uma das mais lendárias duplas do cinema, Scorsese e De Niro. Provavelmente,
será a mais subestimada.
9/10
De acordo, um filme que à partida pode não augurar nada de extraordinário, seja por ser um remake, seja por ter um género e uma história perfeitamente definidas e pouco interessantes. Isto tudo, e como disse, à partida. Porque, e não fosse ele de Scorsese, à medida que nos envolvemos no ambiente e na história a previsibilidade desaparece, o piloto automático esfuma-se e dá lugar a mais um re-inventivo trabalho do génio italo-americano. Grande filme, e grande experiência, sem dúvida (a comprovar que se pode fazer tudo, e bem feito, com qualquer coisa em mãos).
ResponderEliminarCumprimentos,
Jorge Teixeira
Caminho Largo
Um grande filme que consegue ser ainda melhor que o original de J. Lee Thompson, que por sinal era um ótimo longa também.
ResponderEliminarAbraço
Nunca vi o original, mas o Robert Mitchum é um dos maiores de sempre.
ResponderEliminarMais uma vez de acordo. O Cabo do Medo é como que Scorsese a brincar a Hitchcock. A sua câmera marca uma presença soberana na condução narrativa - cada um dos seus movimentos tem um papel activo e determinante na construção do suspense, que se intensifica num crescendo sufocante e irreversível à medida que caminhamos para o desfecho brutal.
ResponderEliminarhttp://www.cineroad.net/2012/01/cape-fear-1991.html
Roberto Simões
CINEROAD.net