Falar dos Estados Unidos da
América não vivendo lá é falar quase de uma realidade paralela que tem tanto de
fascinante como de assustadora. O poder, a dimensão e a multitude deste país
parecem ser propagandeados e comentados ao ponto de exaustão e mesmo assim
conseguem soar tão distantes e inatingíveis, talvez ainda mais para quem é
criado numa cultura tão introvertida como a portuguesa. Livros como On The Road
de Jack Kerouac, músicos como Tom Waits ou filmes como Two-Lane Blacktop
levam-nos por viagens aos confins do território, sugerindo um espírito de liberdade
e aventura contagiante, que é, por vezes, motivado por razões obscuras ou que
tem consequências torpes.
Martha Marcy May Marlene chega a
ser opressivo na sua exploração por esse negrume que também está presente na
América mais profunda. De vez em quando aparecem filmes como este, em que quem
os faz acusa alguma dúvida ou mesmo descrença nos ideais que se pretende
associar à nação, porque para além das histórias de sucesso e riqueza há também
histórias de solipsismo e tragédia e porque a sua grandeza é feita à custa de
muita deceção. E, no fundo, são estes contrastes que humanizam e tornam
interessante uma cultura que perde cada vez mais noção da realidade, à medida
que novos paradoxos do capitalismo e da tecnologia alienam as pessoas, ao criarem
padrões de vida artificiais e ao vulgarizarem a privacidade.
Por conseguinte, chegamos a esta
personagem feminina, que em determinados pontos do filme acaba por ter todos os
nomes do título, e cuja confusão, quer se manifeste em termos de comportamento
ou raciocínio, é alimentada por uma grande recusa em se conformar com a
estupidificação da sociedade e um grande desejo de pertencer a algo. Vemos
Martha pela primeira vez em fuga, entrando numa bouça, sem olhar para trás,
apesar do chamamento de um homem fora de câmara. Vai ao encontro da sua irmã
mais velha, que se conformou voluntariamente à classe média-alta e
está bem na vida, alguém que não vê há 2 anos. São órfãs que cresceram
separadas, com resultados muito diferentes.
Lucy é delicada e paciente, mas é
difícil esquecer que abandonou Martha ao seu destino, por isso não é surpresa
que a segunda tente a todo o custo ocultar a sua experiência traumática
enquanto membro de um culto naturalista, machista e criminoso que se aproveitou
da sua ingenuidade, aumentando as suas inseguranças, transformando o seu
comportamento em socialmente inaceitável e abusando do seu corpo, mas
mantendo-a presa com um conceito artificial de família. O filme apresenta assim
duas realidades: o passado, com uma quinta e uma irmandade calorosa mas
distorcida e o presente, com uma casa num lago e uma irmã de sangue
aparentemente perfeita mas sem noção.
O realizador Sean Durkin consegue
atingir um tom de ameaça e incerteza constante, quer seja graças às atitudes
erráticas de Martha, aos silêncios desconfortáveis, à argúcia déspota de
Patrick, o líder do culto, ou à ambiguidade de certas cenas, tudo fatores que tornam
desconfortável a simplicidade aparente do filme. A mais pequena ação das
personagens parece isenta de inocência, quando Patrick apanha uma rapariga a
fumar age com uma passividade ameaçadora, quando o marido de Lucy pergunta a
Martha quais são os seus planos parece mais interessado em vê-la pelas costas
do que perceber porque não a via há tanto tempo, até o ato de experimentar um
vestido parece tudo menos natural.
Em Magnolia (Paul Thomas
Anderson, 1999) ouvia-se "eu tenho tanto amor para dar e nunca sei onde o
pôr", algo que me parece adequado para Martha. O vestido é cor-de-rosa, a
cor do amor, e acaba manchado de urina. A identidade desta rapariga está fraturada
e ela acaba por nunca reagir condignamente ou ter uma resposta emocional lógica
seja em que situação estiver, o que leva o espectador à paranoia. É um papel
dificílimo que Elizabeth Olsen (yup, a irmã mais nova das gémeas preferidas do
cinema infantil dos anos 90) carrega com perfeição, alternando vulnerabilidade
com acrimónia nas alturas mais surpreendentes. Martha conhece 2 famílias e não
pertence a nenhuma. Abruptamente, acaba.
9/10
Eu não havia escutado absolutamente nada a respeito desse filme, de repente várias pessoas comentam o alto nível da produção. Parece-me indispensável. Abraço
ResponderEliminarÉ um grande filme indie americano, vale a pena, mas não é fácil. Espero que gostes! Abraço
ResponderEliminarE acaba, tal como todo o filme, instalando incertezas... como se tivéssemos sonhado e nada tivesse sido visto! É aquele tipo de incerteza admirável.
ResponderEliminarGosto bastante de cinema independente, que é onde surgem obras tremendas de cinema e normalmente sem estatuto. É o filme pelo filme.
Contudo, apesar de achar que o filme é BOM (7/10) não sinto capacidade de subir mais nota, talvez por ser assim tão difuso.
Destaco a forma como vamos acompanhando duas linhas narrativas (passado/presente) e ambas em crescento no turbilhão de sentimentos e paranoia da realidade. Sinistro e deixa como que intacto o mistério deste culto. A jovem Olsen está muito bem e aguardo pelo indie "Liberal Arts", onde também protagoniza.
Sem dúvida quanto à "incerteza admirável".
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