domingo, 8 de março de 2015

Detour (Edgar G. Ulmer, 1945)

A sorte e o azar são duas faces de uma moeda a que atribuímos importância (arrisco-me a dizer) diária, nas mais variadas encruzilhadas com que nos deparamos. Quando fazemos um teste e achamos que o nosso conhecimento não tem o exclusivo da preponderância no resultado final ou quando saímos de casa e escolhemos o caminho A e não o B na esperança de apanhar menos trânsito; frequentemente até questões de saúde, que sabemos dependerem apenas de fatores genéticos ou comportamentais, podem para ai confluir consoante a surpresa, gravidade ou proximidade com que nos atingem. Num momento ou noutro já sentimos que a sorte e o azar não estão restritos aos casinos ou às casas de apostas, antes parecem controlar o nosso quotidiano. Isto, qual lampreia à bordalesa em pleno alto Minho, é uma das especialidades do film-noir, sendo Detour um dos exemplos clássicos disponíveis para degustação.

Não era o emprego perfeito para um pianista com aspiração a tocar no Carnegie Hall como Al Roberts, mas tocar melodias comerciais no Break O’ Dawn Club pelo menos era seguro, recebia-se gorjetas jeitosas e ainda se podia estar junto da namorada. Diz ele: “I was an ordinary healthy guy and she was and ordinary healthy girl and when you get those two together you get an ordinary healthy romance, which is the old story, sure, but, somehow, the most wonderful thing in the world”. Sim, diz ele… ao balcão de um tasco perdido no escuro da noite algures à beira de uma estrada, enquanto remói as reviravoltas inesperadas que a sua vida sofreu e se lembra de como, afinal, era feliz antes de meter na cabeça que valia a pena mudar-se para a Califórnia atrás de Sue, que o abandonou em detrimento do seu sonho de vingar em Hollywood. Entre o nevoeiro do Este e o sol do Oeste desenrola-se uma grande viagem.

Nada mais condizente com a mitologia americana do que ir costa a costa pedindo boleia. Com o mínimo de glamour possível, afinal isto é film-noir. Precisamente no carro de um estranho é que as ilusões se começam a desfazer, quando o condutor troca de lugar com Roberts e adormece no lugar do passageiro, para nunca mais acordar. Terá sido um ataque cardíaco ou qualquer maleita com efeito fulminante? Terá sido a queda acidental sobre uma rocha no momento em que Roberts abre a porta do seu lado, para o acudir? O protagonista não se sente culpado nem sequer tem razões para isso, só que o medo e a frustração leva-nos a ações disparatadas. Desempregado e sem dinheiro, que faria a polícia se fosse chamada a intervir? Certamente julgariam que matou o homem de propósito. A cena parece um esboço monocromático do assassinato dum polícia no meio de nenhures em Fargo, no deserto em vez de ser na neve.

Mais à frente, cruza caminhos com uma mulher do passado do morto e vai tudo de mal para pior. A tensão é muita, especialmente por parecer prestes a resvalar para um romance escaldante a qualquer momento. Tivesse Edgar G. Ulmer um pingo de criatividade e a primeira interação entre eles não se resumiria aos mesmos dois planos num veículo em movimento repetidos cinquenta vezes, seria bastante mais eletrizante. No meio de tanta confusão, Roberts quer manter, no mínimo, a lealdade a Sue, até a reencontrar. Se a reencontrar. No fundo, é um tipo com bom fundo, atraiçoado pelas circunstâncias… e com uma dose tremenda de azar. Ou será que se torna mesmo num criminoso? Qual é a diferença deontológica entre matar sem querer e matar por raiva? Tudo perde significado, exceto a existência singela que antes se desdenhava. A sorte e o azar não estão restritos aos casinos ou às casas de apostas, invadem o quotidiano.

7/10

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