A sorte e o azar são duas faces
de uma moeda a que atribuímos importância (arrisco-me a dizer) diária, nas mais
variadas encruzilhadas com que nos deparamos. Quando fazemos um teste e achamos
que o nosso conhecimento não tem o exclusivo da preponderância no resultado
final ou quando saímos de casa e escolhemos o caminho A e não o B na esperança
de apanhar menos trânsito; frequentemente até questões de saúde, que sabemos
dependerem apenas de fatores genéticos ou comportamentais, podem para ai
confluir consoante a surpresa, gravidade ou proximidade com que nos atingem.
Num momento ou noutro já sentimos que a sorte e o azar não estão restritos aos
casinos ou às casas de apostas, antes parecem controlar o nosso quotidiano.
Isto, qual lampreia à bordalesa em pleno alto Minho, é uma das especialidades
do film-noir, sendo Detour um dos exemplos clássicos disponíveis para
degustação.
Não era o emprego perfeito para
um pianista com aspiração a tocar no Carnegie Hall como Al Roberts, mas tocar
melodias comerciais no Break O’ Dawn Club pelo menos era seguro, recebia-se
gorjetas jeitosas e ainda se podia estar junto da namorada. Diz ele: “I was an ordinary healthy guy and she
was and ordinary healthy girl and when you get those two together you get an
ordinary healthy romance, which is the old story, sure, but, somehow, the most
wonderful thing in the world”. Sim, diz ele… ao balcão de um tasco
perdido no escuro da noite algures à beira de uma estrada, enquanto remói as
reviravoltas inesperadas que a sua vida sofreu e se lembra de como, afinal, era
feliz antes de meter na cabeça que valia a pena mudar-se para a Califórnia
atrás de Sue, que o abandonou em detrimento do seu sonho de vingar em
Hollywood. Entre o nevoeiro do Este e o sol do Oeste desenrola-se uma grande
viagem.
Nada mais condizente com a
mitologia americana do que ir costa a costa pedindo boleia. Com o mínimo de
glamour possível, afinal isto é film-noir. Precisamente no carro de um estranho
é que as ilusões se começam a desfazer, quando o condutor troca de lugar com
Roberts e adormece no lugar do passageiro, para nunca mais acordar. Terá sido
um ataque cardíaco ou qualquer maleita com efeito fulminante? Terá sido a queda
acidental sobre uma rocha no momento em que Roberts abre a porta do seu lado,
para o acudir? O protagonista não se sente culpado nem sequer tem razões para
isso, só que o medo e a frustração leva-nos a ações disparatadas. Desempregado
e sem dinheiro, que faria a polícia se fosse chamada a intervir? Certamente
julgariam que matou o homem de propósito. A cena parece um esboço monocromático
do assassinato dum polícia no meio de nenhures em Fargo, no deserto em vez de
ser na neve.
Mais à frente, cruza caminhos com
uma mulher do passado do morto e vai tudo de mal para pior. A tensão é muita,
especialmente por parecer prestes a resvalar para um romance escaldante a
qualquer momento. Tivesse Edgar G. Ulmer um pingo de criatividade e a primeira
interação entre eles não se resumiria aos mesmos dois planos num veículo em
movimento repetidos cinquenta vezes, seria bastante mais eletrizante. No meio
de tanta confusão, Roberts quer manter, no mínimo, a lealdade a Sue, até a
reencontrar. Se a reencontrar. No fundo, é um tipo com bom fundo, atraiçoado
pelas circunstâncias… e com uma dose tremenda de azar. Ou será que se torna
mesmo num criminoso? Qual é a diferença deontológica entre matar sem querer e
matar por raiva? Tudo perde significado, exceto a existência singela que antes
se desdenhava. A sorte e o azar não estão restritos aos casinos ou às casas de
apostas, invadem o quotidiano.
7/10
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