terça-feira, 15 de novembro de 2011

Secrets & Lies (Mike Leigh, 1996)

Ninguém carrega a influência do kitcken sink drama melhor que Mike Leigh, movimento cultural tipicamente britânico do século passado que se concentrava em explorar a realidade social, como se replicá-la nas artes realçasse as questões mais pertinentes, os conflitos mais usuais ou os fenómenos mais positivos do dia-a-dia. No cinema, em This Sporting Life, Georgy Girl ou Kes, entre outros, homens e mulheres comuns revelam vidas comuns, enfrentam problemas comuns, e somos imediatamente levados a reconhecermo-nos, a envolvermo-nos. Mike Leigh domina esta arte. A sua grande preocupação neste filme é evidenciada logo pelo título: segredos e mentiras, daquele tipo que guardamos até da nossa família, com os quais vivemos sem deles falar, e que, mais cedo ou mais tarde, explodem na nossa cara como granadas vindas do nada.

Desaparecida que está a sua família adoptiva, Hortense força-se a encontrar a sua mãe biológica. Sem filhos e num casamento algo estagnado, o fotógrafo Maurice concentra-se no trabalho. Volúvel e pouco sociável, Monica passa os dias em casa a melindrar a filha com todo o carinho possível. Cedo se percebe que estas personagens são todas frutos da mesma árvore genealógica, por muito perto ou longe que estejam física e emocionalmente. Os conflitos são inevitáveis, mas lidados com o máximo de compaixão e neutralidade possível por Leigh, porque tudo isto é quotidiano e cada um é livre de ter a sua abordagem. Há sempre quem se ria e quem chore em alturas de aperto. Parece mais que estamos a olhar para a rua da janela da nossa sala do que sentados no escuro a ver um filme.

Claro que este tipo de filmes é um gosto adquirido. São perfeitamente acessíveis e despretensiosos, mas com pouco replay value. Banal tecnicamente e superficialmente desnorteado, Secret & Lies conta com dezenas de minutos de actividades sem interesse do dia-a-dia filmadas com impassibilidade, diálogos improvisados ou cenas que pouco contribuem para o esboço de narrativa que parece estar traçado. É um facto que é este tipo de iniciativas do realizador que mais contribuem para criar um espírito humanista envolvente, às vezes de forma imperceptível, como a cena em que o antigo dono da loja de Maurice lhe vai pedir emprego, onde a contenção de Timothy Spall é comovedora, mas isso pode não ser suficiente para quem aprecia cinema mais elaborado e intencionado.

Quando chegamos ao fim e tudo vem ao de cima, sentimo-nos aliviados, porque a forma como Leigh nos vai direcionando para mais e mais perto destas pessoas aos poucos e poucos faz-nos sentir que pertencemos a esta família, vemos e sabemos tudo, como vivem, quem são e como foram; partilhamos os seus segredos e mentiras. Os actores estão completamente absorvidos pelas suas personagens, todas as suas subtilezas e contradições, com especial destaque para Marianne Jean-Baptiste, que toca ainda mais por ser tão honesta e saber muito menos até que o espectador. Quando ela ganha coragem para perguntar a Monica sobre o seu pai e recebe histeria como resposta, é tão triste. Tão triste. Em termos de realismo e ressonância, Secrets & Lies é irrepreensível e obrigatório. Essa é que é a verdade.

7/10

6 comentários:

  1. Para mim, são exactamente as cenas do dia-a-dia que fazem grande parte do cinema de Leigh. Pois se o cinema quer levar a realidade para o ecrã, deve provir-se de momentos em que nada de relevante se passa, porque a vida está cheia de momentos "vazios". Não importa se esses momentos acrescentam ou não algo de importante à narrativa dominante, interessa que eles existam porque fazem parte da vida dos personagens.
    Gosto mais do "Another Year". É um melhor filme tecnicamente e a excelente direcção de actores é ainda mais notória. Estonteante representação a de Lesley Manville.

    ResponderEliminar
  2. Percebo perfeitamente. É só uma questão daquilo que cada um procura no cinema, e admiro Leigh mas devo admitir que não é propriamente dos meus preferidos. Ainda não vi o Another Year, mas gostei do Happy-Go-Lucky. Cumprimentos

    ResponderEliminar
  3. O realismo radical de Leigh me aborrece um pouco. Mas não nego que é um grande diretor.

    O Falcão Maltês

    ResponderEliminar
  4. De Mike Leigh eu assisti apenas "All or Nothing" também com o ótimo Timothy Spall e com Sally Hawkins ainda bem jovem.

    Gostei e pretendo conferir outras obras do diretor.

    Abraço

    ResponderEliminar
  5. Um dos grandes filmes do inconformista Mike Leigh, sempre com um olhar surpreendente sobre a sociedade Britânica.
    Abraço cinéfilo
    Rui Luís Lima

    ResponderEliminar
  6. Antonio: Partilho a tua opinião.

    Hugo: Timothy Spall é sem dúvida óptimo em tudo o que faz.

    Rui: Quanto a realizadores britânicos com consciência social, prefiro o Alan Clarke. Completamente diferente, mas igualmente inconformista :)

    ResponderEliminar