Um
dos momentos mais memoráveis e desconfortáveis de Cannes aconteceu em 1995 -
nesse ano, dois filmes com as guerras recentes na Jugoslávia como pano de fundo
assumiam-se como maiores candidatos à conquista da Palma de Ouro. Ulysses' Gaze
de Theodoros Angelopoulos e Underground de Emir Kusturica procuravam encontrar
razões para o carácter repetitivo de tão destruidores ciclos de violência e
caminhos para uma paz duradoura, através
de execuções muito diferentes, ou pelo menos era o que se dizia. Na cerimónia
de entrega dos prémios, o realizador sérvio viria a ganhar a honra maior do
festival pela segunda vez na sua carreira e o seu homólogo grego teria de se
contentar com o Grande Prémio do Júri, o que não aconteceu, pois assim que
subiu ao palco para o receber disse
apenas "se é só isto que têm para me dar, não tenho nada para vos
dizer."
Não
querendo justificar a atitude petulante de Angelopoulos, o seu filme é
contemplativo, grandioso e de um virtuosismo técnico talvez unicamente superado
por Tarkovsky, enquanto que o filme de Kusturica é um circo de auto-paródia que
se deixa levar por brejeirice e fantasia; apesar do seu enorme alcance temporal,
esboça pouco para além de uma caricatura dos eventos mais trágicos e das
preocupações geopolíticas da região. A história segue dois bandidos muito
amigos, que fazem dinheiro a roubar despojos de guerra para gastar em
prostitutas e amantes que simpatizam com o regime nazi (ou pelo menos com os
soldados). Blacky lidera as operações da resistência local com o seu espírito
guerreiro e tem o poder de sobreviver a explosões de granadas, enquanto que
Marko se assume como o seu essencial contraponto intelectual e um adepto da
masturbação durante bombardeamentos.
Tomando
uma cave como base, o grupo, composto por habitantes locais dos mais diversos
grupos etários, passa a viver exclusivamente numa realidade alternativa, produzindo
armamento dia e noite, tendo Marko como único ponto de contacto com o exterior,
o que se revela um mau voto de confiança, já que este decide manter os
conterrâneos na ignorância quando o conflito mundial finda em 1945 e o Marechal
Tito toma o poder, perpetuando uma mentira durante 20 anos. Com que propósito?
É uma boa pergunta. Será por querer roubar a actriz Natalija para si, quando o coração
desta parece descair para Blacky? Será por lhe dar jeito um exército de escravos
para atingir algum objectivo político numa Jugoslávia comunista? Ou será apenas
uma metáfora para o isolamento que os regimes ditatoriais cultivam? Ideias mal
passadas e personagens inconsistentes são regra.
Underground
foi criticado por ser historicamente irresponsável e, no extremo, simpatizante
com a causa Sérvia na última guerra dos Balcãs. Não chegaria tão longe, mas é
de facto decepcionante que, tendo conhecimento de causa, Kusturica não consiga
fazer mais do que cozinhar uma mistura insossa da espontaneidade do cinema checo com
o slapstick de um Fellini, sem o vanguardismo e os subtextos do primeiro nem a
fluidez e fulgor visual do segundo. Na última hora ainda se encontram vestígios
de emoção e do infernal efeito nas personagens de todo o sofrimento a que foram
subjugados ao longo do séc. XX, mas depois de duas horas de uma total confusão,
banalidade e falta de profundidade a todos os níveis, é tarde. Underground diz
pouco, entretém pouco, é longo e barulhento demais. O melhor é rever os
clássicos de Menzel e Forman. Quiçá até o tal filme de Angelopoulos...
4/10
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