terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Underground (Emir Kusturica, 1995)


Um dos momentos mais memoráveis e desconfortáveis de Cannes aconteceu em 1995 - nesse ano, dois filmes com as guerras recentes na Jugoslávia como pano de fundo assumiam-se como maiores candidatos à conquista da Palma de Ouro. Ulysses' Gaze de Theodoros Angelopoulos e Underground de Emir Kusturica procuravam encontrar razões para o carácter repetitivo de tão destruidores ciclos de violência e caminhos para uma paz duradoura,  através de execuções muito diferentes, ou pelo menos era o que se dizia. Na cerimónia de entrega dos prémios, o realizador sérvio viria a ganhar a honra maior do festival pela segunda vez na sua carreira e o seu homólogo grego teria de se contentar com o Grande Prémio do Júri, o que não aconteceu, pois assim que subiu ao palco para o receber disse apenas "se é só isto que têm para me dar, não tenho nada para vos dizer."

Não querendo justificar a atitude petulante de Angelopoulos, o seu filme é contemplativo, grandioso e de um virtuosismo técnico talvez unicamente superado por Tarkovsky, enquanto que o filme de Kusturica é um circo de auto-paródia que se deixa levar por brejeirice e fantasia; apesar do seu enorme alcance temporal, esboça pouco para além de uma caricatura dos eventos mais trágicos e das preocupações geopolíticas da região. A história segue dois bandidos muito amigos, que fazem dinheiro a roubar despojos de guerra para gastar em prostitutas e amantes que simpatizam com o regime nazi (ou pelo menos com os soldados). Blacky lidera as operações da resistência local com o seu espírito guerreiro e tem o poder de sobreviver a explosões de granadas, enquanto que Marko se assume como o seu essencial contraponto intelectual e um adepto da masturbação durante bombardeamentos.

Tomando uma cave como base, o grupo, composto por habitantes locais dos mais diversos grupos etários, passa a viver exclusivamente numa realidade alternativa, produzindo armamento dia e noite, tendo Marko como único ponto de contacto com o exterior, o que se revela um mau voto de confiança, já que este decide manter os conterrâneos na ignorância quando o conflito mundial finda em 1945 e o Marechal Tito toma o poder, perpetuando uma mentira durante 20 anos. Com que propósito? É uma boa pergunta. Será por querer roubar a actriz Natalija para si, quando o coração desta parece descair para Blacky? Será por lhe dar jeito um exército de escravos para atingir algum objectivo político numa Jugoslávia comunista? Ou será apenas uma metáfora para o isolamento que os regimes ditatoriais cultivam? Ideias mal passadas e personagens inconsistentes são regra.

Underground foi criticado por ser historicamente irresponsável e, no extremo, simpatizante com a causa Sérvia na última guerra dos Balcãs. Não chegaria tão longe, mas é de facto decepcionante que, tendo conhecimento de causa, Kusturica não consiga fazer mais do que cozinhar uma mistura insossa da espontaneidade do cinema checo com o slapstick de um Fellini, sem o vanguardismo e os subtextos do primeiro nem a fluidez e fulgor visual do segundo. Na última hora ainda se encontram vestígios de emoção e do infernal efeito nas personagens de todo o sofrimento a que foram subjugados ao longo do séc. XX, mas depois de duas horas de uma total confusão, banalidade e falta de profundidade a todos os níveis, é tarde. Underground diz pouco, entretém pouco, é longo e barulhento demais. O melhor é rever os clássicos de Menzel e Forman. Quiçá até o tal filme de Angelopoulos...

4/10

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