domingo, 10 de novembro de 2013

My Fair Lady (George Cukor, 1964)

Os anos 1960 foram a última época dourada do musical em Hollywood, basta ver que nessa década foram quatro os vencedores do Óscar de Melhor Filme que se inserem nesse género e, desde então, houve apenas Chicago. Não sendo o maior fã de ver pessoas começarem a cantar de cada vez que algo minimamente relevante, positivo ou negativo, lhes acontece, forçando rimas e falhando o playback, há sempre excepções. My Fair Lady não é uma delas e as razões vão muito para além dessa questão.

Rex Harrison interpreta um pretensioso mestre da fonética, aparentemente desempregado mas rico, que dedica os dias a adivinhar a proveniência de quem encontra na rua através dos seus sotaques. Em Londres consegue colocar alguém a uma distância máxima de dois quarteirões donde moram, o que seria cómico se não fosse totalmente irrealista e irrelevante. À saída da ópera, atura uma vendedora de flores com voz particularmente esganiçada que nem a fuligem na cara oculta ser Audrey Hepburn.

O professor Higgins comenta na altura com um amigo, o coronel Pickering, que conseguiria fazer da rapariga, a quem dá uma boa esmola (talvez por masoquismo tenha gostado de ser levado à irritação), uma duquesa, se tentasse. Eliza Doolittle ouve, leva as palavras demasiado a sério e no dia seguinte aparece à porta do homem com o intuito de pagar por aulas de dicção, para, no mínimo, poder subir na vida até florista numa loja. Tratada como lixo, aceita submeter-se a todo um curso de boas maneiras.

O que a conquista são os chocolates que o professor lhe oferece quando ela se preparava para bater a porta, vexada. Sim, porque toda a gente sabe que as mulheres não resistem a bombons e nada tem mais piada do que vê-las sujeitarem-se a abusos psicológicos por velhotes que não têm nada para fazer só para terem essa recompensa. Bem, o pai de Eliza aparecer em casa de Higgins para exigir 60 libras para álcool e deixar a filha entretanto a morar lá parece ser pelo menos tão engraçado para o argumentista.

Ainda assim, uma música com as empregadas como coro diz-nos que devemos sentir pena do doutor, porque odeia a coitada que se sujeita a quase tudo para que ele satisfaça o seu complexo de superioridade mas perde horas de sono para a transformar numa senhora. Infelizmente, o filme gera um conflito de intenções ao pôr Hepburn com vontade de matar o seu malicioso patrono. Apesar de tudo, ninguém a está a obrigar a nada. Tem roupas e calorias à borla. Mesmo que por capricho dele, não está mau.

Eliza pronuncia bem, ao cabo de meses, a lengalenga “the rain in spain stays mainly in the plain”, segue-se uma música que consiste apenas dessa frase com a ordem das palavras trocada (porque rima sempre, que esperteza!) e outra sobre dançar à noite (wtf?) e assim sabemos que está pronta para ser introduzida na alta sociedade, incluindo ir às corridas de cavalos e ao baile do embaixador, os momentos ideais para a actriz exibir a sua beleza em dois vestidos de designer e conhecer um interesse amoroso.

Interesse que é mais dela, amor mais dele, e só fica a vaga noção de que num futuro para além do argumento pode haver algo entre eles porque o rapaz é tão persistente quanto rico e ingénuo (de tal forma que admite, rimando “before” com “before”, que se apaixonou assim que a menina contou como o pai era um bêbado) e parece dormir no passeio durante dias enquanto a acção se desenvolve, à espera de a rever. Freddy é apenas a segurança de Eliza e, como tal, o mais triste namoradinho da história do cinema.

Com o sucesso que faz nas suas aparições públicas, alimenta o ego de Higgins, que dá o seu projecto por concluído, tornando-se claro que não tem mais planos para a artista anteriormente pertencente às classes baixas. Parece que só ao voltar do baile ela se apercebe de que é descartável e a partir daí temos de ter pena dela, porque, claro, não pode voltar para donde veio. Agora é uma princesinha e tem direito a todos os luxos do mundo, pela simples razão de que passou a estar habituada a isso.

Ao mesmo tempo, por ironia do destino e não por ter recebido auxílio da filha, o seu pai passou também a fazer parte da classe média, mas está insatisfeito porque a vida deixou de ser simples e de consistir de dormir, beber e pedir emprestado. Agora tem de ceder aos vícios e malefícios inerentes à sua nova condição, como casar-se, ir à igreja ou ter de pagar pelo que consome. Como é perigosa e má para a sociedade a classe média, comparando com a nobreza do alcoolismo e da pobreza!

Esse encontro fortuito não muda a relação entre ambos - apenas sedimenta na mente de Eliza a ideia de que não pode voltar atrás. Então, procura a protecção da mãe de Higgins (que deve ter 200 anos, já que ele parece um octagenário) e que se mostra chocada com o facto de o filho ter sido extremamente claro quanto a apenas querer usar Eliza… como se alguém lhe tivesse apontado uma pistola à cabeça e não chocolates. Higgins é um idiota, mas apenas por não ter, pelo menos, sacado um beijo à Audrey Hepburn.

Porque é que isso não acontece? Talvez por ele ser mais gay do que o José Castelo Branco (e pior cantor – a sério, eu a gorgolejar Betadine para a halitose canto melhor que o Rex Harrison aqui). My Fair Lady contém as músicas mais ofensivas para o sexo feminino que eu já ouvi; percebo que o propósito fosse explorar com alguma ligeireza a misantropia do professor, mas o seu assumido desejo de que as mulheres se parecessem mais com os homens roça o ofensivo e cultiva a ideia de que o coronel Pickering deve ser o seu amante.

Depois disto tudo, Higgins tem um momento de fraqueza e canta que precisa daquela asinina, ela que nunca fez nada em casa, que lhe volta as costas, que vira a mãe contra ele e que apenas estorvava a vida do “pobre doutor”. Eliza volta mesmo e sorri perante a sugestão de uma tarefa doméstica. Depois de todos os berros de Hepburn, de se ouvir o sotaque britânico até à náusea durante três horas, das facadas na nobre arte da canção, este momento de silêncio consegue ser o mais irritante do filme.

Pegue-se por onde se pegar, My Fair Lady é um desastre de história, de interpretações, e inclusivamente musical. As duas personagens principais são movidas por um egoísmo feroz, apenas reforçando que não importa de onde se vem, o que importa é a educação que se tem. Eliza é estragada por duas figuras de total incompetência, o pai e o professor, e o resultado é uma mulher brejeira mas peneirenta. Foi por causa de filmes destes que apareceu a Nova Hollywood.

1/10

9 comentários:

  1. Um dos grandes musicais de Hollywood, que revejo de vez em quando, sempre com muito prazer. E atenção à falácia habitual de que "gostos não se discutem". Discutem-se sim, e, mais do que tudo, educam-se. É por isso que há por aqui muita aprendizagem a ser feita...
    Já agora, fiquei curioso com essa tal de "Nova Hollywood". De que se trata?

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    1. Sem dúvida, por isso agradeço o comentário :) Nova Hollywood é o termo normalmente usado para a geração do Scorsese, Friedkin, Coppola, entre outros, que se começou a notabilizar no fim dos anos 60/início dos anos 70, com novas ideias que mudaram o cinema americano de várias formas.

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    2. Ah bom, essa "Nova Hollywood" conheço eu bem, por momentos pensei estar-se a referir à época actual. De qualquer forma não vejo que relação possa haver entre musicais como "My Fair Lady" e o aparecimento dessa nova geração de talentos. Julgo que foram muito mais influenciados pelo cinema europeu, sobretudo do que se convencionou chamar de "Nouvelle Vague"

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    3. Eu não disse que foram influenciados por filmes destes; é exactamente o contrário, surgiram como reacção contra filmes destes.

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    4. Eu percebi a ideia. Só que isso não é verdade, qualquer deles admirava o musical. Basta ver o que Scorsese fez com "New York New York" ou Coppola com "One From The Heart". Métodos diferentes, é claro, mas ambos a prestarem homenagem ao musical.

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    5. Sim, mas esses não são filmes que definem as suas carreiras nem essa geração.

      Não estou a discriminar o musical, mas sim a realçar as limitações e a estagnação do sistema de estúdio na altura.

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    6. Considero "New York New York" um dos melhores filmes de Scorsese. Se define ou não a sua carreira, isso é subjectivo. Aliás, acho que é muito difícil um único filme "definir" a carreira de qualquer cineasta. A não ser que não tenha feito mais nenhum...
      Quanto ao "One From the Heart", se mais qualidades não tivesse (e tem-nas e muitas) deu-nos a conhecer até aonde um homem consegue ir para concretizar o seu sonho, contra tudo e todos. No caso concreto, foi até à falência, como se sabe. Mas se não fosse esse filme saberíamos alguma vez de que estirpe o homem-Coppola é feito?
      Se "My Fair Lady" representa as "limitações" e a "estagnação" do sistema de estúdio, então fá-lo muito mal...

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    7. Estou a ver que publicou hoje um texto sobre o My Fair Lady! Prometo que vou ler.

      Gosto imenso do New York, New York.

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    8. Não era para postar já, embora estivesse agendado para breve. Mas confesso que fiquei "chocado" (cinematográficamente falando, claro) pelo que li por aqui...
      Também já abordei o "New York New York":
      http://ratocine.blogspot.pt/2011/04/new-york-new-york-1977.html

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