quinta-feira, 13 de março de 2014

12 Years A Slave (Steve McQueen, 2013)

Enquanto Edwin Epps (Michael Fassbender) chicoteia violentamente Patsy (Lupita Nyong’o), nua e presa a um poste, já depois de ter coagido Platt (Chiwetel Ejiofor) a abrir as hostilidades, num espectáculo degradante de intimidação, e com os incentivos sádicos da Sra. Epps (Sarah Paulson) de fundo, ouve-se dizer “mais cedo ou mais tarde, algures no curso da justiça eterna, vocês vão responder por este pecado.” Cinematicamente falando parece que esse momento chegou, tendo em consideração a quantidade de filmes que saíram nos últimos tempos e que abordam o assunto da escravatura na América.

O mais interessante é que, para pegar nos exemplos mediáticos, tanto Lincoln, como Django Unchained e agora este 12 Years A Slave são produtos de enorme qualidade e extremamente diferenciados: Spielberg preferiu evitar polémicas e realçar o papel de brancos, e do 16º Presidente em concreto, no sentido da abolição, num modo livro de História, Tarantino ousou repetir à exaustão a palavra “nigger” e efabular, com o seu típico humor negro, e McQueen eleva a gravidade de certas contradições humanas de um passado real e violento ao mesmo nível de impacto e secura que em Hunger, sendo, de longe, o menos acessível.

Felizmente, o realizador inglês tem tido a sorte de recolher mais prémios do que os colegas, mas já se sabe como isso é relativo; a verdade é que a sua visão do sul dos EUA no período pré-Guerra Civil é a mais cruel e vívida de todas, pela intenção de constringir as personagens e o espectador à realidade da vida dos escravos. Na primeira plantação para onde vai parar, Platt ainda tem alguma liberdade, apesar de quase ser enforcado por um capataz que, digamos assim, não simpatizou consigo. Rotulado de difícil, é despachado para a propriedade de Epps, e aí parecemos chegar ao último círculo do Inferno de Dante.

Os doze anos representam mesmo um caminho descendente, já que Platt, aliás, Solomon Northup, principia por ser um homem livre, que é vilmente raptado através de uma promessa de trabalho. Para voltar a viver aprende a sobreviver, sem cair em desespero, sempre com a esperança de um dia rever a família e voltar a Saratoga, no norte. Destituído da sua identidade, forçado a esconder a sua literacia, a maior lição vem quando, apesar de toda as traições e provações sofridas, volta a depositar confiança num homem branco, Bass (Brad Pitt). Ao manter o coração aberto, encontra uma saída.

Por ser separado da urbanidade e educação que conhecia, ficamos à espera que lhe seja possível regressar, e, assim, a história de Solomon tem um objetivo. Por outro lado, Patsy e as centenas de escravos como ela que vemos ao longo do filme não conhecem outra realidade, é como se a submissão estivesse entrelaçada no seu ADN, e isso é igualmente chocante. Veja-se como, ainda na casa de Ford (Benedict Cumberbatch), quando Solomon fica a pender de uma árvore, com uma corda ao pescoço, apoiado nas pontas dos pés, durante muito tempo, os restantes continuam com as suas tarefas…

Tal qual na alegoria da caverna de Platão, nasceram num beco sem saída e não concebem um mundo diferente. Na única ocasião em que algum esboça um desejo, no caso Patsy, é severamente punido. Por um sabão, que era o que ela queria, era lavar-se como uma pessoa. Nyong’o e Fassbender são incríveis juntos, fazendo lembrar uma ampliação da relação distorcida entre Amon Goeth e Helen Hirsch na Schindler’s List, cheia de sentimento de culpa masculino, acentuado por ambos acreditarem ser de uma raça superior e estarem a rebaixar-se ao se apaixonarem por uma preta ou uma judia.

Ao filmar apenas com uma câmara, McQueen rejeita a manipulação temporal dos momentos-chave, tornando as suas implicações mais perceptíveis à medida que a acção se desenrola, ou seja, o realismo é uma preocupação. Frequentemente, essas cenas são alternadas com simples caminhadas ou close-ups prolongados, forçando-nos a pensar no que acabámos de ver e a considerar as possibilidades de desenvolvimento futuro. Esta arte da ponderação é rara no cinema actual, e, mais não fosse, o sucesso de 12 Years A Slave prova que é intemporal. Excelência a todos os níveis e a toda a prova.

9/10

2 comentários:

  1. Parabéns pelo texto. Muito bem escrito e de uma leitura leve apesar de o conteúdo ser de um peso maior que a capacidade que nós humanos aguentamos carregar. A escravidão mundo afora é um dos mais tristes momentos de nossa história, em que apenas a ganância e o poder de ego eram importantes, custe o que custar!

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    1. Muito obrigado Emerson! Já agora, eu li a tua crítica deste filme no teu blog, por isso sei que também és fã do filme :) Não gosto do Google+, mas vou tentar comentar mais, pois é dessa interacção de que vivem os blogs e eu, pela minha parte, agradeço os teus comentários :)

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