A qualidade dos filmes de Iñarritu é evidente. Seja nos
dramas deprimentes do início da carreira ou na comédia experimental do ano
passado, dificilmente se pode contestar que chegam ao patamar de verdade
emocional e criatividade técnica a que se propõem. Contudo, é possível argumentar
que a consistência não tem sido a sua principal preocupação. Não é uma crítica, apenas uma constatação. O caminho pelo qual vai enveredar a seguir fica cada
vez mais imprevisível, o que também ajuda a criar expectativa, como aconteceu
quanto a The Revenant, ainda por cima depois dos relatos emergentes de
dificuldades na produção, ao ponto de elementos da equipa se despedirem ou
terem sido despedidos.
Biutiful estava dependente do grau de realismo exibido desde
Amores Perros até Babel para resultar, apesar de já conter tiques
espiritualistas, secundários ao cerne da história. Birdman representou uma
liberação do processo de montagem enquanto salvaguarda de eficácia, a passagem
dos jump cuts para os planos-sequência intermináveis foi uma mudança de estilo
radical. Em certa medida, a trilogia da morte, escrita por Guillermo Arriaga,
autojustifica-se, existe separadamente num universo uno, e, de seguida, o
realizador partiu à procura da sua identidade. Com The Revenant, baralha o que
entretanto aprendeu e começa um novo jogo, o do cinema contemplativo.
A curiosidade pelo meio ambiente em que as personagens se
inserem tem algo de Terrence Malick. A desarmonia no convívio de europeus e
nativos ajuda a associar ao The New World (2005). Alguns pormenores visuais
lembram Andrei Tarkovsky, como a igreja vazia e os sonhos repletos de
simbolismo, ou o Come And See (1985) de Elem Klimov, porque a beleza natural
esconde instintos humanos destrutivos (e o Will Poulter é a fotocópia do rapaz desse
clássico bielorusso). O cometa que atravessa o céu ou a avalanche de neve ao
longe são daqueles pequenos milagres que nada explicam e, no entanto,
acrescentam algo de etéreo. Os mestres supramencionados saberiam apreciar.
Estas meditações não deixam de assentar numa caça vingativa
muito direta e violenta. Hugh Glass (Leonardo DiCaprio) serve de guia a
expedições de comerciantes de peles através de zonas inóspitas da América,
nomeadamente ao longo do rio Missouri. A dureza dos homens rivaliza com a dos
elementos. Glass é perseguido por índios, atacado por um urso e vê um
companheiro de viagem esfaquear até à morte o filho. Depois de Essential
Killing (Jerzy Skolimowski, 2010) achei que se tinham atingido os limites da
intensidade na luta pela sobrevivência. Estava enganado. A diferença é que em
The Revenant não se foge de uma ameaça, procura-se satisfazer uma vontade
animalesca.
Apenas quando tem a possibilidade de a concretizar vê como é
inútil. Até lá, a força de vontade de Glass e os seus métodos primitivos de caça,
pesca, aquecimento, manuseamento de feridas e afins surpreendem a cada minuto.
A fotografia de Emmanuel Lubezki é de uma clareza e uma fluidez que esgotam
adjetivos. O trabalho de DiCaprio idem. Ninguém tem sido tão consistente na
excelência das suas interpretações como ele nos últimos 10 anos. Claro que há
um tal de Daniel Day-Lewis, mas esse aparece entre o comum dos mortais menos
vezes do que o messias. Com esta conjugação de elementos, Iñarritu chega
ao ponto alto da carreira. The Revenant é, sem reservas, um dos melhores
westerns que eu já vi.
9/10