segunda-feira, 30 de maio de 2016

Morvern Callar (Lynne Ramsay, 2002)

Às vezes somos confrontados com pessoas, situações ou atitudes que mexem connosco num nível primitivo de emoção e que percebemos sem perceber porquê, sem as conseguir explicar coerentemente. Morvern Callar pode ser uma experiência desse tipo ou pode ser uma frustrante sucessão de momentos de irracionalidade pura. A primeira cena pode dizer tudo e pode não dizer nada, mas dirá demasiado àqueles que imediatamente quiserem julgar a personagem principal. O namorado de Morvern está deitado no chão da casa onde viviam, morto, com os pulsos cortados, e é impossível dizer se Morvern se sente triste, contente, se sente o que quer que seja perante tal cena. E esse é o cerne da divisão entre espectadores que adoram este filme e espectadores que o odeiam. Porque mesmo que pouco ou nada do que ela faça a partir desse ponto seja razoável, simplesmente será difícil apreciar a forma como, confrontada com a dúvida, com o suicídio inexplicável de alguém que lhe era próximo, ela recusa sentir-se paralisada e deixa o seu instinto tomar todas as decisões e levá-la aonde quer que seja, já que uma coisa é certa, a sua vida nunca mais será a mesma. Se ela sente raiva ou se sente mágoa é impossível auferir e, provavelmente, até sente tudo ao mesmo tempo, sentimentos contraditórios, porque quando há muitas perguntas e nenhumas respostas ficamos a tatear no escuro e no escuro tudo é igual para o observador destreinado.

Samantha Morton é brilhante. Brilhante. Pega na sua personagem, que é uma personagem que até nem tem muitos traços característicos à partida, que prima por passar despercebida em ambientes sociais, introvertida e pouco faladora, e obriga-nos a prestar atenção a tudo o que faz, a cada gesto ou tique, porque nunca sabemos quando vai revelar algo que possa denunciar a razão porque age constantemente de formas tão imprevisíveis e inescrutáveis. Mas, claro, nunca se vai explicar a ninguém. Não haverão grandes confissões nem grandes prantos. O que só nos obriga a prestar ainda mais atenção. Que é que vai na cabeça desta mulher? Porque é que ela vai a uma festa depois de descobrir o namorado morto? Porque é que abandona a sua melhor amiga sem uma palavra por causa de uma disputa ridícula na viagem que fazem a Espanha? Porque é que sorri, só sorri e porque é que um sorriso em tempo de tragédia é centenas de vezes mais desarmante que uma cascata de lágrimas? Este filme é o existencialismo em imagens e sons, e, tal como o existencialismo, é imensamente frustrante e é imensamente cativante. Lynne Ramsay começa a recolher atenções, e Morvern Callar, no fundo, não é assim tão diferente de Ratcatcher, outro filme em que seguimos alguém que vê a face da morte e prossegue a sua vida a um passo desajeitado. Ramsay opta agora por um trabalho de câmara mais fluído, com menos close-ups e mais distante de Robert Bresson, que sempre me pareceu ter sido uma referência na rodagem da estreia. Morvern Callar é um filme belo, profundo - único.

9/10

quarta-feira, 25 de maio de 2016

Vicky Cristina Barcelona (Woody Allen, 2008)

O grande mérito de Vicky Cristina Barcelona está no equilíbrio que atinge entre os tons cómicos dos filmes de sempre de Woody Allen e o fatalismo melancólico que se tem tornado mais evidente nos últimos anos (ainda que talvez nunca volte a atingir a desolação de um dos seus trabalhos mais esquecidos, Interiors). A história segue duas amigas americanas que decidem passar um verão em Barcelona. Ambas gostam de parecer maduras, uma mais discreta, a outra mais desinibida, contudo a sua real ingenuidade virá a perturbá-las com decisões que não conseguem racionalizar.

Cristina (Scarlett Johansson numa interpretação sem carisma) e Vicky (Rebecca Hall a espalhar subtileza) conhecem Juan Antonio (Javier Bardem com muita classe) e uma teia de relações amorosas começa a desdobrar-se à nossa frente. Ainda que a geometria do guião seja admirável, as ansiedades de Allen não encontram apoio na narração seca e vazia, nem na inabilidade de Javier Aguirresarobe de filmar diálogos que se estendam por mais de uma página, vendo-se uma repetição de ângulos mal trabalhados em várias cenas, mesmo que tente compensar com uma saudável dose de “planos-postal”.

Juan Antonio é direto quanto às suas intenções, oferecendo todos os prazeres que os rendimentos de pintor reconhecido permitem e que os impulsos masculinos cobiçam. Para Cristina, abre-se um mundo de exotismo latino que não hesita em explorar; para Vicky, nenhuma aventura se deve sobrepor à segurança da relação estável que mantém do outro lado do Atlântico, mesmo que a tentação seja difícil de resistir. Talvez como consequência do sol espanhol, desta vez Allen demite-se de intelectualizar o sexo e as personagens envolvem-se com languidez e naturalidade.

A chegada de Penélope Cruz, ao cabo de uma hora, com a sua expansividade, vem dar imensa cor a este filme, que, no fundo, não deixa de ter o seu charme. Como em Match Point, o realizador consegue, aos poucos, introduzir dilemas morais que trazem ao de cima a presença da casualidade nos momentos mais determinantes das nossas vidas. Pode-se ter sorte e azar, pode-se perder oportunidades e desperdiçar tempo. As pontas ficam soltas para Cristina e Vicky, depois de experiências tão distintas, apesar de a casa de partida ter coincidido. Resta-lhes fazer as malas e voltar para casa com uma sensação agridoce.

7/10