Poço sem fundo de ideias, o dinamarquês Lars von Trier apadrinhou em 2003 um conceito a ser desenvolvido por realizadores novatos, que batizou de Advance Party. Dadas meia dúzia de personagens, delineadas em papel em meia dúzia de linhas, os escolhidos teriam de criar à sua volta argumentos originais. E assim nasceu Red Road, com Andrea Arnold como filiação.
Jackie (Kate Dickie) é operadora de videovigilância. Vê os dias passarem através das câmaras que estão espalhadas por várias zonas da cidade de Glasgow. Alienou-se do mundo, mas está responsável por o patrulhar, sentada numa divisão escura, cuja única luminosidade provém dos ecrãs que se espalham pelas paredes como janelas eletrónicas e dos cigarros que acende em catadupa.
Arnold faz questão desde o início de mostrar o desconforto desta mulher com a sua vida atual, à qual parece tentar conformar-se sem sucesso. Não evita cruzar-se na rua com estranhos que reconhece do seu trabalho nem renuncia a sexo com um homem casado, tal é a sua necessidade de ter o mínimo de contacto humano, mas é pouco. E então aparece, num dos monitores, um homem do seu passado.
A sua obsessão com Clyde (Tony Curran), que passa a seguir religiosamente, primeiro à distância, depois pela cidade, começa a consumi-la, mas a razão é incerta para o espectador. Como que vítima dum sortilégio, Jackie tem, simplesmente tem de se aproximar deste ex-presidiário mulherengo (que poderá nutrir também um interesse excessivo em pelo menos uma aluna de secundário).
A ligação mais imediata do filme é o Dogma 95, um manifesto também ele idealizado por Lars von Trier, que impõe uma realização à base de câmaras de mão e o exclusivo uso de luz natural e som diegético. Arnold faz um trabalho excelente a este nível, um silêncio meditativo mas tenso segue Jackie para todo o lado, em especial pelo soturno bairro de Red Road, onde mora Clyde.
É um filme que se faz de impulsos primitivos, há muito suprimidos, que se faz do que se diz mas acima de tudo do que não se tem coragem de dizer. Há uma camada de tensão sexual muito espessa, que se adensa à medida que a personagem principal parte, talvez inocentemente, talvez intencionalmente, para uma nova relação física potencialmente perigosa (e filmada de forma muito explícita).
A desconhecida Kate Dickie tece uma interpretação notável à medida que desenrola o complexo novelo da vida de Jackie, que a leva a emoções assolapadas e a ações de cariz moral duvidoso. Parece claro que Clyde não lhe traz boas memórias, mas insiste em aproximar-se mais e mais e mais, porquê? O passado que une estas personagens é dramático e revelado com um cuidado e uma compreensão emocionantes.
A atmosfera deprimente de Red Road engole quem o vê, e que bem que sabe, que bem que sabe ver cinema em que a história é bem complementada pelo meio que a adota. Arnold estreia-se com um filme talvez longo demais para o seu próprio bem, talvez tão longo quanto tinha de ser, mas certamente dum intimismo sufocante. E agora venham mais filmes da Advance Party, por favor.
8/10
Fiquei bastante curiosa! Vou tratar já de ver este filme! (também fui grande apreciadora do Fish Tank)
ResponderEliminarO Fish Tank é muito bom, e tem a sorte de contar com um dos melhores actores da actualidade, o Michael Fassbender. Este é mais negro e soturno. Ou seja, também vale muito a pena :)
ResponderEliminar"impulsos primitivos" - adorei
ResponderEliminarObrigado :D
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