Em verdadeiro espírito Bressoniano, o filme começa com um plano de mãos.
Primeiro, a dele a bater à porta. Depois, a dela esgueirando-se para fora a
empunhar uma sande. Acções a definirem rituais do dia-a-dia a definirem a ordem
que as personagens procuram nas suas vidas mas que acaba sempre por ser
quebrada, tornando a busca pela sua recuperação, na segurança de rotinas quotidianas, ainda mais incessante. Andar, por exemplo, caminhar, até à bouça,
até ao silo, até a praia, mais, até mais longe, estrada acima, estrada abaixo.
Pode ser que no fim se chegue a algum lado.
Os filmes de Dumont são povoados por imagens violentas, retratos de actos
violentos, partos de pessoas banais que parecem estar em luta com a maldade com
que, por esta ou aquela razão (ou mesmo por nenhuma razão em particular), se
lhes atravessou à frente, porque o pecado pode encontrar-nos no outro lado do
mundo (Flanders), pode morar na casa ao lado (Humanity) ou até dentro de nós,
como parece ser o caso em Hors Satan. Ele (sempre anónimo) é feito de
contrariedades e tão fácil de gostar como de odiar - não por factores
subjectivos, simplesmente por ser capaz do melhor e do pior.
O ritmo é lento e o som totalmente diegético, para evidenciar a ausência de
juízos de valor nas seguintes comunhões maniqueístas: justiça disfarçada de
homicídio, um espancamento seguido de um exorcismo, luxúria contrabalançada com
um milagre, entre outras. Só sabemos o que o título nos diz - o maior desejo é
o de praticar o bem. Talvez seja o trabalho menos interessante de Dumont em
termos de história (Twentynine Palms não conta, pois a economia nesse filme é
tal que consome qualquer vestígio de história), mas a personagem principal é a
mais completa que já criou.
Lembrei-me de The Last Temptation Of Christ (Martin Scorsese, 1988), em que
só sabemos que estamos perante o messias porque é identificado pelo nome e por
episódios bíblicos amplamente reconhecíveis. Se assim não fosse, teríamos
apenas um homem, em conflito consigo mesmo, desesperado por ser uno com a
natureza que o rodeia. Em Hors Satan é igual, com um redobrado sentimento de
incerteza, porque o ambiente é mais suave e verdejante e a introspecção é
proibida. Mais um filme fascinante, cru, rico em textura e significado, para o
espectador paciente.
8/10
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