Inspirado pelo neorrealismo italiano, o Cinema Novo foi um
movimento brasileiro de grande expressão nos anos 1960 e que deu a descobrir
autores como Glauber Rocha, Nelson Pereira dos Santos ou Anselmo Duarte. Usando
a fórmula das alegorias urbanas, com histórias contemporâneas e filmagens
predominantemente in situ, realizaram filmes de enorme profundidade, para além
de visualmente impressionantes e evocativos. Um deles foi O Pagador de
Promessas.
Zé do Burro carrega uma cruz feita por si de grandes dimensões
da sua quinta até à cidade de Salvador da Bahia, a quilómetros de distância,
numa viagem de vários dias e debaixo das mais diversas condições atmosféricas,
sempre seguido pela sua contrariada esposa. Faz parte do trato religioso que o agricultor
fez com Santa Bárbara e que só mais tarde é explicitado – se Nicolau, o animal
que lhe dá a alcunha, deixasse milagrosamente de estar doente, Zé iria oferecer
a sua obra à igreja da virgem mártir.
Depois de uma montagem de belas imagens do Nordeste rural, a
acção começa com a chegada do casal ao seu destino, de noite. Rosa tem sido
tolerante, mas está farta de dormir ao relento. Olha com algum desprezo para a
devoção do marido mas, mesmo assim, quando aparece Bonitão, um mulherengo
local, a oferecer-lhe ajuda para procurar hotel, tem maus pressentimentos e
fica relutante. Zé quer ficar na escadaria da igreja e, tentando ser
compreensivo, deixa Rosa ausentar-se acompanhada…
Na manhã seguinte, troca palavras com o padre, que repudia a
intervenção de um feiticeiro no processo e o recurso a macumba. A inocência de
Zé levou-o a incorrer num pecado, apesar de ser um católico devoto, é mal
interpretado e proibido de entrar com a cruz. O homem pagou o auxílio com
metade das suas terras, ainda não sabe que Rosa o traiu e, em pouco tempo, o
caso ganha mediatismo, os media querem aproveitar-se dele, um taberneiro
também, enfim, a desonestidade rodeia-o.
A influência de filmes como The Bicycle Thieves é notória. Tal
como na obra-prima de De Sica, a sociedade conspira contra as morais do
protagonista, que não prima pela inteligência, mas é inexcedível em bondade.
Aqui, no entanto, nunca se sente tentado a desistir, aliás, a dimensão
desmesurada que a situação toma só reforça as suas convicções. Percebe, da pior
maneira, que os interesses das religiões nem sempre se coadunam com a fé dos
seguidores, mas reclama o direito de cumprir a sua promessa.
Essa e outras contradições são intemporais; já o cinismo dos
jornalistas assume contornos proféticos, manipulando os factos a seu bel-prazer
para subirem na carreira, sem preocupação com a verdade. Isto numa era sem
directos televisivos, internet ou Photoshop. O filme pode parecer algo
simplista, mas como fábula que é apenas tenta realçar os conflitos da forma
mais vívida possível. O poder das imagens e da interpretação de Leonardo Villar
é inquestionável.
9/10