Steven Spielberg parece ter iniciado um ciclo, com duração
ainda por determinar, de emulação de um dos seus realizadores preferidos, John
Ford, cujos filmes, recheados de beleza pictórica, mensagens anti-guerra,
retratos de família ou cenários históricos, apareciam como referência evidente
em War Horse. O mesmo acontece em Lincoln, com o guião de Tony Kushner
exclusivamente focado na passagem do 16º presidente dos EUA pela Casa Branca,
qual sequela tardia de Young Mr. Lincoln.
Ao contrário de War Horse, a necessidade de contar uma
história ficcional com contexto histórico específico é secundarizada pela
intenção de ponderar o impacto na História de uma figura icónica real que pode
até ter ficado aquém do seu potencial e nem ter materializado todas as suas
ideias por ter sido arrastado para uma guerra civil brutal no início do seu
mandato, posteriormente encurtado por um assassinato público, e sempre envolto
em incompreensão, por vezes à conta da sua teimosia paciente.
De modo adequado, o filme começa in media res, em plena
batalha de Jenkins’ Ferry, com especial atenção aos soldados negros, que viam,
finalmente, a possibilidade de serem livres ao fundo do horizonte, mas
rapidamente somos conduzidos à Washington do séc. XIX, onde o esmero no design
de produção a nível de cenários e bigodaços se torna mais evidente. Não
abdicando de uns brilhos nas lentes e de realçar a altura de Lincoln para lhe
dar uma imagem quase divina, Spielberg acaba por mostrar várias facetas.
Cedo fica claro que mesmo do lado do antigo presidente há
quem esteja disposto a não dar seguimento à Proclamação da Emancipação, o
primeiro passo no sentido de terminar a escravatura, válida apenas
durante a guerra. Com a rendição da Condeferação dos estados sulistas próxima
de se tornar uma realidade, é necessário legislar a igualdade dos negros no
Congresso e os dilemas políticos que rodeiam tal mudança são imensos, mas são
os dilemas morais que mais preocupam Lincoln.
Ele sente-se a ser empurrado de todos os lados para trair
aquilo em que acredita e a abandonar o processo que já iniciou. A sua
obstinação leva-o a comportamentos ditatoriais e a tácticas que podem ser
consideradas persecutórias para conseguir votos a favor da sua 13ª Emenda.
Apesar da sua fleuma num ambiente profissional, com a sua esposa e o seu filho
mais velho a imagem de auto-controlo é contrariada com frequência, revelando as suas
fragilidades e receios.
A depressão de Mary e a insistência de Robert em alistar-se,
como os filhos de tantos outros americanos, tiram-no do sério. A personificação
de Daniel Day-Lewis é impressionante, mas nestes momentos em especial a sua mestria
vem ao de cima, veja-se a discussão entre a sua personagem e a de Joseph
Gordon-Levitt. Às vezes as pessoas mais próximas são as que mais se magoam umas
às outras; o pai não resiste e dá uma chapada ao filho, imediatamente
segurando-o, arrependido.
Entre Gangs Of New York, There Will be Blood e Lincoln estão
provavelmente as três melhores interpretações do séc. XXI. A forma como Daniel
Day-Lewis se torna no papel é o método de Lee Strasberg levado ao extremo, onde
mais ninguém consegue chegar hoje em dia. De resto, para um filme de 2 horas e
meia de Spielberg composto maioritariamente por conversa, passa bastante bem e
com uma dose equilibrada de sentimentalismo. Lincoln é de um classicismo
esclarecido e cativante.
8/10
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