domingo, 24 de novembro de 2013

A Promessa (António de Macedo, 1973)

Uma carroça atravessa as dunas e chega a uma aldeia piscatória, perdida na areia e no tempo. Dois ciganos procuram ajuda médica para o irmão que foi esfaqueado, mas ninguém nas redondezas está qualificado para os ajudar a esse nível. O sacristão da capela, José, e a família oferecem-lhe asilo e comida, que acreditam ser suficiente, já que as feridas não parecem ameaçadoras. Enquanto esperam por melhorias, os outros instalam-se com uma tenda numa praia próxima e rapidamente se empenham em sacar dinheiro vendendo relíquias pagãs aos locais, aproveitando-se da sua pouca instrução e da sua fé, que tanta preponderância tem sempre nestas comunidades.

A presença dos estrangeiros deixa de inspirar desconfiança para passar a representar medo quando estes raptam uma jovem e desaparecem, não se coibindo de deixar o irmão para trás, que desde o início demonstra ter outro tipo de morais e atitudes. À medida que vai recuperando as suas forças prepara-se para os confrontar, nem que isso implique violência, estabelece amizade com quem o acolheu e muda-se para um moinho velho, talvez por querer a distância que a sua etnia normalmente procura, talvez por não querer estorvar e muito menos dar azo a burburinhos sobre a ajuda que recebe de Maria enquanto o marido José está no mar, especialmente quando toda a gente sabe da promessa…

Nas vésperas do seu casamento, o casal fez um voto de castidade, na esperança de o pai dele conseguir voltar a terra durante uma tempestade particularmente violenta. Um ano volvido, a falta de envolvimento físico parece ter conduzido a relação para um impasse. Grato a Deus por ter afastado a tragédia, ele não pondera voltar atrás com a sua palavra, nem mesmo tendo o aval do jovem padre João, que considera mais importante salvar o matrimónio. A religião é indissociável da aldeia, mas os sacrifícios em nome dela são feitos de claras contradições terrenas. O padre antigo admite, por exemplo, ao mais novo que até a igreja se rege pelo dinheiro e há que aproveitar a festa de S. Pedro para ganhar algum. Qual é a diferença para os ciganos?

Como Pasolini, António de Macedo consegue criar um mundo muito próprio, ermo e ventoso, que quase parece ter sido fabricado para o filme. Os travellings vacilantes e a mistura de som, com os diálogos de umas cenas a intrometerem-se noutras, criam um sentimento visceral de confusão e incerteza que ultrapassa os desenvolvimentos da história e reflecte a postura católica típica relativamente à sexualidade. O realizador, no último plano, estaria, acredito, consciente da polémica que certas imagens provocariam e joga com a forma como a vilificação da nudez no cinema chega a sobrepor-se, infamemente, ao impacto de uma morte, como se o coito fosse um pecado maior que o assassínio. A Promessa é inconfundivelmente português.

8/10

4 comentários:

  1. Mais um filme para a lista. Boa crítica. Venham mais cem (e por aí fora). Cumprimentos.

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    1. Tanto este como o Domingo À Tarde são grandes filmes do António de Macedo, não sei de qual gosto mais.

      Obrigado, Aníbal :D

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  2. Este foi um dos filmes que mais gostei de ver no MOTELx. Fenomenal, mais ainda para a época em que foi feito. Uma forte critica social e óptimas interpretações.

    Se tiveres curiosidade em espreitar, aqui fica uma pequena crítica que fiz na altura em que o vi: http://hojeviviumfilme.blogspot.pt/2013/09/motelx13-promessa-1973.html

    Bom texto, David.

    Cumprimentos cinéfilos.

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    1. Pronto, para o ano vou ao MOTELx :D Já fui ler, ainda deste uma nota mais alta do que eu! Mas vale a pena :)

      Obrigado, Inês. Cumprimentos

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