sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Gentleman's Agreement (Elia Kazan, 1947)

Phil Green (Gregory Peck) é um repórter em ascensão que acaba de aceitar uma proposta de trabalho em Nova Iorque, para onde se muda, proveniente da Califórnia, com o filho (um Dean Stockwell com dez anos) e a mãe. O editor da revista Smith’s Weekly apresenta-lhe novas pessoas, incluindo a sobrinha Kathy (Dorothy McGuire), na qual fica imediatamente interessado, e o primeiro desafio, escrever um artigo sobre antissemitismo, que não o atrai muito à partida. Afinal, estamos num período pós-Segunda Guerra Mundial, por isso é possível imaginar que o assunto, ainda que sempre relevante, estivesse um pouco batido na altura.

Sim, porque a sensibilidade do tema não assusta Phil, é só que, apesar do seu intenso desdém pela xenofobia, ele não sabe o que pode trazer de novo para a discussão. Finalmente, tem a ideia de se fazer passar por judeu, aproveitando-se do facto de estar numa cidade diferente, o que é pouco consistente, já que a fama que tem adquirido, ao ponto de ter agora um melhorado contrato na costa Leste, se deve primariamente aos sacrifícios, qual método de Lee Strasberg, que costuma fazer por uma boa história, como, por exemplo, quando se tornou num mineiro durante algum tempo para escrever sobre a profissão.

Encarar a personagem não se revela difícil, mas o nível de discriminação de que passa a ser vítima surpreende-o, e a mim também me surpreendeu. É arrebatador tomar consciência da sua verdadeira proporção numa América que acabara de libertar a Europa da sombra do nazismo, pelo caminho revelando ao mundo o horror do Holocausto. Enquanto isso, no seu território, continuava a ser cultivado na sociedade civil um desprezo mesquinho pela religião, ao ponto de muitas empresas não contratarem quem a ela estivesse associado ou de muitos hotéis não permitirem reservas a Goldmans, Coens, e outros que tal.

Como denúncia, Gentleman’s Agreement é poderoso. O mais simples diálogo fica revestido de dupla importância pela possibilidade de uma ofensa, até porque vemos como Phil leva a questão cada vez mais a peito à medida que o tempo passa e a paixão com que defende uma mudança de atitudes, incluindo dos que o rodeiam. O reverso da medalha é que, tendo-se atirado de cabeça para uma realidade com a qual não estava habituado a lidar e que o acompanha diariamente enquanto mantém o disfarce, perde o juízo crítico e começa a acusar tudo e todos de antissemitismo, incluindo Kathy, com quem chega a planear casar-se.

Cheguei ao meu maior problema com o filme. Admiro a dedicação de Phil, mas o seu esforço torna-se desproporcionado e quando é confrontado com isso pela namorada somos conduzidos a tomar o partido dele. Phil leva tudo para o domínio da mesquinhez e, como a conversa de Kathy com David (um amigo judeu) nos indica, quem não reage activamente e sisudamente é cúmplice com a xenofobia. Depende. Impor regras à família dela para haver a hipótese de surgirem conflitos ideológicos numa festa caseira não é aceitável. Deixar o filho ser afectado pela mentira que o ajudará profissionalmente é egoísta.

Vai longe demais e não é isento de falhas. Sendo que o próprio país é apresentado como estando arrogantemente convencido de ter superioridade moral, a sua força e ego reforçados por uma vitória militar gigantesca, faria sentido conduzir a evolução de Phil pelo mesmo caminho, o seu sucesso em concomitância com um moralismo insuportável. Se acabasse no penúltimo encontro entre o casal de protagonistas, seria incerto e maravilhoso. Nada disto tira mérito à sólida realização e às grandes interpretações, habituais nos filmes de Kazan. Em 1947 fez este papa-prémios e fundou o Actors Studio. Um ano histórico, portanto.

6/10

2 comentários:

  1. Olá David. Este é um dos chamados "message movies" que mais me tocou até hoje.

    Discordo um pouco do que dizes. Para mim a questão principal do filme é denunciar formas de racismo em que não tínhamos pensado antes. É a velha questão aplicada noutros campos que se resume a "qual o pior, aquele que faz o mal, ou o que assiste em silêncio?" É por aí que o filme nos consegue incomodar, pois vemos que mesmo uma pessoa liberal e moderna como Kathy se envergonhava de pensar que o noivo pudesse ser visto como judeu.

    Se temos um amigo de outra raça, e o aceitamos por não sermos racistas, vamos-nos envergonhar dele? Vamos impedir que ele case com uma familiar nossa? Vamos achar que prejudica o nosso filho se se pensar que somos dessa raça? Ao fazê-lo não estamos a ceder à lógica que queremos combater? Lembro a cena da anedota de "Philadelphia", em que o personagem de Tom Hanks explica que quem ri, mesmo não sendo homofóbico, está a pactuar com quem é.

    É delicado lidar com isto, mas o racismo/xenofobia/intolerância surgem em formas que não esperamos, e se calhar todos temos um pouco disso, sem perceber. O filme lança esse alerta com perguntas incrivelmente acutilantes e actuais.

    Abraço.

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    1. Em primeiro lugar, obrigado pelo comentário!

      Eu compreendo a tua perspectiva, e sem dúvida que o filme passa essa mensagem. O exemplo que dás do Philadelphia ilustra bem o mesmo, aliás, há outra cena de que gosto muito nesse filme, que é quando a personagem do Denzel Washington fala com a mulher na cozinha sobre o caso e faz comentários homofóbicos, ele que é preto e tem consciência do poder destrutivo dos estereótipos.

      Contudo, acho que o Phil Green neste filme pede demais e, com isso, perde razão. Kathy não tem espírito combativo, certo, mas se ela se envergonhasse de pensar que o noivo fosse visto como judeu não alinhava com ele na mentira. Bem sei que a questão ultrapassa o trabalho a partir de certo ponto e Phil tem boas intenções, mas não deixa de estar a mentir e, como tal, não acho que tenha o direito de fazer mind games com Kathy e até com o filho para o disfarce não ir por água abaixo.

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