Interstellar reforça o estatuto
de Christopher Nolan como o realizador que devora mais artigos da Wikipédia.
Depois de elucubrações sobre sonhos tão intricadas que exigiram uma personagem,
a de Joseph Gordon-Levitt, cujo único propósito era explicar o enredo em
Inception (apesar disso, destaca-se pela intensidade das sequências de acção
diversificadas e simultâneas), eis que o seu regresso se proporciona por
intermédio de um desejo de homenagear o seu filme preferido, 2001: A Space
Odyssey, claramente expresso pelas pistas visuais espalhadas com insipidez e algo
aleatoriamente, como emparelhar um plano de alguém no leito da morte com outro
de alguém à deriva no espaço ou dar personalidade a robôs de configuração
monolítica.
Quando se atinge um equilíbrio
tão meritório entre dinâmica narrativa e eficiência técnica como aconteceu em
The Dark Knight compreende-se que comece a borbulhar um sentimento de audácia.
Bandas desenhadas parecem, depois de tanto sucesso, cada vez menos o limite
daquilo que se pode explorar com os recursos à disposição e a mente divaga para
assuntos do subconsciente ou da ciência que não se ouve falar no cinema, apesar
de preocuparem figuras de QI muito elevado, como wormholes, viagens no tempo e
a lei de Murphy. Não quero ridicularizar tal desejo, aliás muito louvável, mas
se há adágio adequado para Interstellar é o princípio de Peter, segundo o qual
um trabalhador só pode ser promovido até ao seu nível de incompetência.
Matthew McConaughey é um
ex-piloto e engenheiro agora remetido à agricultura, como grande parte da
humanidade, ou assim somos levados a crer. Estamos situados num futuro não
muito distante em que a população mundial regista uma curva descendente e os
recursos naturais estão em falência. Existe paz, só que exige minimalismo nos
modos de vida. Imagens de campos intermináveis de milho e tempestades de areia
são entrecortadas por testemunhos com ar documental de idosos sobre os tempos
difíceis, que havemos de perceber que pertencem ao futuro, naquela que é a primeira
má decisão: isto é pura ficção e bastante pessoal até, por isso ninguém quer
saber de humanos anónimos se a história também não quer.
Sucedem-se três quartos de hora do
quotidiano, tão normal quanto possível nestas circunstâncias e considerando que
a matriarca morreu com cancro, da família de Cooper, que inclui um filho mais
velho, uma filha mais nova e o sogro. A química entre o pai e a rapariga é
carinhosa; o primeiro prefere educar a segunda para ser audaciosa e não se
conformar com o pouco que tem e muito menos a acreditar num sistema de ensino
aparentemente tão asséptico e anormal que nega as alunagens dos anos 1960 numa
altura em que há tecnologia suficiente para enviar todos os alunos das
redondezas ao Mar da Tranquilidade e voltar, se bem que isso não aconteceria
devido à contenção de custos generalizada.
Precisamente por essa razão, a
NASA passou à clandestinidade, operando agora numa base secreta que, graças a
circunstâncias bizarras posteriormente esclarecidas, com toda a certeza
devaneadora tornada constante ao longo do filme, os dois descobrem. A iminência
do fim do planeta Terra é relatada com grandes ornatos verbais, incluindo o
sempre credível sotaque britânico de Michael Caine, e Cooper torna-se
imediatamente o homem adequado para pilotar um foguetão que vai ser atirado por
um wormhole para procurar o melhor poiso para onde a nossa espécie possa
emigrar ou que possa popular com o esperma e os óvulos que vão na bagagem,
dizendo-se então adeus aos que restam aqui em baixo na parvónia.
O critério nas três missões
anteriores de reconhecimento havia sido a falta de laços emocionais dos
astronautas, contudo agora é diferente, apenas porque Nolan tem de meter um
drama movido por uma boa dose de culpa pelo meio. Não é comum inserir um
suplemento tão caseiro a um espectáculo de ficção-científica da dimensão que
Interstellar anuncia; até que ponto isso resulta é discutível. O protagonista é
egoísta ao ponto de se julgar indispensável e deixar os seus rebentos órfãos,
já que o trabalho é afectado por percepções diferentes da passagem do tempo,
explicadas com excertos da teoria da relatividade (a sério, liguem o WiFi e vão
consultando a Wikipédia), e a miúda ao ponto de não se despedir do pai.
Murphy envelhece ao longo do
filme e exprime unicamente ressentimento por se terem separado desta maneira.
Por conseguinte, a partir do momento em que levantamos voo pela primeira vez só
o visual e a acção podem despertar interesse. Remetendo para as naves em baile no vazio da
obra de Kubrick, o astro oceânico de Solaris e as paisagens gélidas de
Oblivion, temos alguns planos razoáveis, encurtados pela necessidade de se
recitar outros manuais científicos. Mais uma vez se prova que o realizador é, no máximo, um óptimo tarefeiro, que não tem olho para acompanhar a grandiosidade dos conceitos
que o fascinam, não se podendo esperar qualquer virtuosismo vindo detrás da
câmara. Dêem-me um Alfonso Cuarón sobre isto, por favor.
Posto isto, é incontornável que
há boas decisões entrementes. Já vimos os treinos a que os astronautas são
sujeitos até à exaustão, pelo que se agradece que tenham sido cortados,
McConaughey é muito carismático e, no fundo, fico contente que alguém tenha
tentado fazer um filme sobre a extinção humana que não se resuma a um meteorito
se estatelar contra nós. Interstellar é confuso e desequilibrado, ainda que
minimamente original. Acho que toda a gente ficaria grata por dedicar o seu
dinheiro e trabalho para um projecto global de salvação coordenado pela NASA
quando já se conhecem três planetas potencialmente adequados para o futuro,
rendendo a clandestinidade da agência à irrelevância, mas tudo bem.
O que vão ler de seguida pode advir
de uma tendência para o cinismo ou para o pragmatismo deste crítico cuja
opinião escolheram ler. Tive de desistir do filme quando, no meio de tanto
malabarismo com conceitos grandiosos de áreas exactas como a física e a
matemática, sobe ao palco central… o amor. A filha do professor Brand só quer
saber de uma das expedições pioneiras, a de Edmunds, porque o ama, declamando
um longo discurso em sua defesa, com um palavreado ranhoso que só confirma a
suspeita de Cooper e do espectador mais racional: estas pessoas não têm a
mínima noção da importância do que estão a fazer. Qual amor? Murphy não gosta
do pai. Ele nem se lembra da esposa. O filho acaba esquecido. Brand não vive a sua paixão.
A ironia suga Interstellar para
um buraco negro na argumentação. Como apoiar personagens que comprometem com
tanta gravidade o seu propósito? O pior é que a melhor decisão seria
precisamente ir primeiro ter com Edmunds, por ter transmitido os melhores dados.
Que trapalhada. A viagem acaba com um “obrigado e podes ir para o caralho, que
eu sou uma celebridade e quero morrer em paz com a parte da família que não me
abandonou”. Tem etapas únicas, sim. O custo é uma seriedade desmedida e
imprecisa. Nolan tenta ser Kubrick, quando lhe falta a respectiva objectividade.
Tenta ser Tarkovsky, quando não compreende a dimensão do humanismo deste. Mais
valia filmar em nome da acção sem compromissos.
4/10