sexta-feira, 7 de novembro de 2014

Barefoot Gen (Mori Masaki, 1983)

Já me perguntaram qual é o filme que eu considero ser o mais deprimente de sempre. Como é habitual quando se exige uma resposta tão definitiva, lembro-me sempre de várias opções. Requiem For A Dream, 21 Grams, Amour, Breaking The Waves, Come And See ou Equus são alguns que, por regra, me vêm à memória. Agora tenho mais um para adicionar à lista: Barefoot Gen. Se estão a pensar como é que uma animação, normalmente associadas a agradáveis memórias de infância, pode ter esse efeito, lembrem-se que estou a falar de uma entrada em território japonês, donde vêm 74% das maiores bizarrias produzidas a nível mundial (a estatística não é minha, nem de nenhuma fonte credível).

Tendo em conta que não há tentáculos a esventrar ninguém ou crianças em poses eróticas vestindo lingerie, até se pode dizer que Barefoot Gen não se destaca pela perversidade por comparação àquilo a que estamos habituados no ocidente. Aqui o que choca é mesmo a transformação, sem compromissos, de uma história familiar colorida e aparentemente cliché, com o aspecto de um episódio da Heidi, no maior inferno à superfície da Terra registado até hoje. Isto porque o jovem descalço do título vive, com os seus pais e três irmãos, dos quais o mais novo ainda está na barriga enorme da mãe, na cidade de Hiroshima. E a história passa-se em 1945. Começam a perceber onde isto vai chegar?

Gen levaria uma vida normal, a ajudar o pai nos campos de trigo, a chatear Eiko e a brincar com Shinji, se não fosse a constante lembrança de que o maior conflito da História se espalhava perigosamente pelo Pacífico, acima de tudo graças à insistência do imperador Hirohito em provocar os EUA, manter a aliança anti-comunista com a Alemanha e liderar o Japão com uma ditadura irresponsável. Um pouco como em To Kill A Mockingbird, o mundo das crianças vai passando lentamente para segundo plano, engolido pelo mundo dos adultos, a sua falta de sensibilidade e as suas noções distorcidas de justiça. Sobra uma réstia de esperança, mas o caminho é indescritivelmente duro.

Quando, no dia 6 de Agosto, um B-29 cruza o céu sobre si, Gen está a chegar à escola. O porão abre-se, algo cai e, de repente, o tempo pára: uma explosão de cores toma conta do ecrã e parece prolongar-se por horas, apesar de o impacto ser instantâneo e a destruição demorar segundos. O realizador Mori Masaki faz prédios inteiros levitar no meio de chamas ainda maiores e os corpos de milhares de pessoas dissolvem-se em câmara lenta, numa sequência de puro horror. Neste momento, os filmes da Disney e os animes infantis dos anos 70-80 passam a ser um rumor do passado e o poder da animação ganha dimensões inimagináveis. Nunca em live action se conseguiria retratar a detonação da bomba atómica de forma tão vívida.

Isto é apenas o início de um pesadelo. Gen e a sua mãe grávida sobrevivem, enquanto o resto tem um destino macabro. O nascimento do bebé precipita-se nestas condições precárias, as consequências da radiação são quase imediatas e a desumanidade de um exército derrotado no tratamento dos seus conterrâneos prolongam o sofrimento. Lembrei-me de Empire Of The Sun, que também conseguia transmitir a sensação de o mundo ter acabado ali; nenhuma construção ficou de pé e anda-se à deriva dias seguidos, apenas procurando satisfazer as necessidades básicas. Este testemunho é um importante e surpreendente manifesto anti-guerra, mas é preciso ter estômago. Fica o aviso… e a vénia.

9/10

2 comentários:

  1. "King of Pigs" e "Grave of the Fireflies". Também em formato de animação. Para ver assistido de lenços renova.

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    1. Já vi o Grave Of The Fireflies, concordo, mas este ainda me bateu mais! O King Of Pigs nem tinha ouvido falar, também deixa a lágrima no canto do olho? :(

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