domingo, 6 de setembro de 2015

Fifty Shades Of Grey (Sam Taylor-Johnson, 2015)

Estima-se que E.L. James, já tenha vendido mais livros do que Roald Dahl, Lewis Carroll, Albert Camus, Thomas Mann, Ernst Hemingway, George Orwell, e até, imagine-se, Stephanie Meyer, a dona de casa americana elevada a portentosa referência da literatura mundial que criou a saga Twilight, fazendo mulheres de todas as idades suspirar em uníssono por vampiros fluorescentes, e inspirando, nada mais, nada menos, do que uma dona de casa inglesa que haveria de começar por escrever fan fiction na internet baseada nesse universo e acabaria a assinar um fenómeno de seu nome Fifty Shades Of Grey, fazendo mulheres de todas as idades verter líquidos variados perante a ideia de uma sessão de paulada sadomasoquista.

Como todos os bestsellers recentes, teve direito a sequelas e a contrato chorudo para ser autorizada uma versão cinematográfica. Ei-la. Para quem é demasiado conservador para consumir pornografia, para quem é demasiado preguiçoso para procurar os clássicos thrillers eróticos que já percorreram caminhos semelhantes como Nine And A Half Weeks ou Basic Instinct, para quem gosta de seguir o que está na moda sem questionar a sua validade, para quem tem, pura e simplesmente, curiosidade, seja por que razão for, mas não se queira subjugar ao martírio de ler quinhentas páginas de algo que se vê a milhas que tem valor artístico questionável, Sam Taylor-Johnson fez o trabalho por vossemecês.

E, devo dizer, não é tão mau como esperava. “Whaaaat?!”, dizeis em coro. Calma, ainda é bastante terrível. Só que, em nome da cinefilia inveterada e da imparcialidade catóptrica, dei o corpo às balas em 2008 e vi o primeiro filme do supracitado Twilight, decisão que, em retrospetiva, foi das piores que tomei na vida, talvez apenas a par daquela vez em que me lembrei de subir por um poste à varanda do primeiro andar da minha escola primária e acabei por cair, rachando a cabeça no cimento do recreio. Para algo que nunca existiria se não fosse pela inspiração advinda dos balbucios trocados entre um pedófilo de 100 anos, uma adolescente retardada e um lobisomem com abdominais, o horror anunciava-se, qual tempestade no horizonte.

Alguém aqui soube o que queria (talvez a realizadora, quero eu acreditar, pelo talento demonstrado com a estreia, Nowhere Boy, e porque não quero dar esse mérito nem à escritora, com quem não simpatizo particularmente, nem aos argumentistas que aleatoriamente foram sendo contratados para escrever fragmentos de diálogos): há muitas etapas a queimar para se transformar uma universitária virgem numa concubina aquiescente e estas sucedem-se com minúcia. O mundo que rodeia Anastacia Steele e Christian Grey é ruído de fundo quase desde o início, pelo que o chamariz pode ser a promessa de sexo à bruta, mas o magnetismo está na proximidade que temos às experiências que levam até esse ponto.

A ideia de um namorado que aparece em todo o lado como se isso fosse enternecedor ao invés de assustador é um ponto de ligação evidente com Twilight. O resultado é que é diferente, porque aqui há uma série de avanços e recuos que ajudam a suportar a atração, a passagem de certos limites, esticando a corda até rebentar. Quando Bella é salva de um atropelamento por Edward, a dinâmica do futuro casal fica definida, um namorico banal tratado com um dramatismo tão pouco convincente como muito hilariante. Quando Anastacia decide fazer à amiga adoentada o favor de lhe entrevistar Christian para o jornal da universidade, num primeiro encontro desastroso, isso é apenas a ponta do iceberg.

Fifty Shades Of Grey talvez seja um alvo fácil por ser um fenómeno de massas com pouco conteúdo e um compêndio de certas fantasias femininas, desde os mais estranhos fetiches sexuais, a algo mais típico e aparentemente inofensivo – encontrar um príncipe encantado que fique perdidinho de amores e que seja feio e pobre. Haha, claro que não, tem também de ser o homem mais bem-parecido do mundo e ser rico como o carago, nem sendo sequer necessário saber de onde lhe vêm os dólares (a sério, os pais de Christian ainda estão vivos e não ostentam tantos sinais exteriores de riqueza, por isso não é o herdeiro de um grande império, não parece ser da máfia… o que se passa mesmo na Grey Enterprises Holdings?).

Isto é a grande crítica que tenho de fazer à construção das personagens, que é o real problema deste filme. Quando a autora, a realizadora ou a atriz Dakota Johnson falam em público numa história que devolve poder às mulheres têm razão, só que duvido que se apercebam da origem distorcida dessa força. Anastacia nunca entraria em jogos sadomasoquistas se não fosse pelas atenuantes de receber um MacBook novo, um carro novo, viagens de avião pagas, etc. No fundo, a sua relação com Christian só é possível porque ele parece um modelo da Hugo Boss e materialmente há compensação, senão o rapaz não passava de um psicopata com um passado de graves crimes sofridos enquanto menor.

Apesar de submissa no sexo, ela torna-se dominante na relação. Christian é frágil e por isso procura mulheres que lhe agradem, enche-as de mimos, sentindo-se um machão quando consegue prendê-las na sua masmorra e enfiar-lhes uma parafernália de brinquedos pelos orifícios. Com Anastacia não é igual, realmente. Porquê? Porque ela é muito mais forte do que ele e, provavelmente, do que as dezenas de mulheres que usufruíram da mesma atenção anteriormente. Isto vira o feitiço contra o feiticeiro de tal forma que Christian julga estar apaixonado. A desorientação é tanta que o intimidante homem de negócios é abandonado à porta do elevador com um “stop” categórico, uma ordem prontamente obedecida, qual escola de treino de cães.

Bem distante de certas alegações de antifeminismo ou de promover violência contra mulheres. Antes pelo contrário, Anastacia usufrui da fortuna do namorado e acaba por dar outra machadada emocional numa pessoa já bastante perturbada. O resto é pinners, ninguém obriga ninguém a nada, as premissas eram explícitas desde o início. Não estou a querer dizer que ela é intencionalmente manipuladora. Estou a querer dizer que o modernismo da história é assente em pressupostos errados e as críticas idem. Isto para nem falar de Mrs. Grey, interpretada pela terrível Marcia Gay Harden, uma suposta santa e “galinha” adorável, apesar de a sua incompetência maternal ter sido tanta que nunca deu fé que o filho fora abusado anos a fio por uma amiga.

Contudo, os melhores filmes de amor estão repletos de desequilíbrios, de segredos que enquanto espetadores partilhamos com as personagens (que não podem ser partilhados com ninguém do seu mundo ficcionado), sentimentos de culpa, paixões assolapadas… Os casais discutem porque têm ideias diferentes, origens diferentes, personalidades diferentes e o fim anuncia-se, independentemente do esforço de ambos os lados para o contrariar. É triste chegar à conclusão que não se pode continuar a estar com uma pessoa que amamos, porque isso faz pior aos dois do que seguir em frente. Descontando as mensagens confusas, os artifícios XXX e o consumismo séc. XXI, até resta um romance bem construído. É preciso descontar muito, mas sim.

4/10

1 comentário:

  1. "As Cinquenta Sombras de Grey": 3*

    Recentemente vi "As Cinquenta Sombras de Grey" e não é tão mau como o pintam, eu gostei do que vi. O livro é mais aprofundado, mas o filme vê-se bem.
    Gostei do que vi em "Fifty Shades of Grey" e recomendo, mesmo não sendo tão bom quanto o livro. O filme emana sensualidade, mas falta sexo e nudez.

    Cumprimentos, Frederico Daniel.

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