É estranho que este filme se tenha tornado um pouco num tesouro perdido e esquecido quando é possível encontrar nele tantos pontos de interesse. Basta o nome do realizador para prender atenções: por muito inconsistente que a sua carreira tenha sido, Francis Ford Coppola é um nome incontornável na história do cinema Americano, e quase à custa de 4 ou 5 filmes apenas. Pois, em termos de qualidade, podem pôr Rumble Fish no mesmo patamar de títulos tão intocáveis como The Godfather (1972) ou Apocalypse Now (1979). Esteticamente irrepreensível, este olhar sobre adolescentes delinquentes, passado sabe-se lá em que década (a sério, há adereços que parecem saídos dos anos 50, os miúdos parecem punks nos 80), é uma mistura tão entusiástica de pura paixão pelo cinema e de pura reverência pela juventude, que só dá mesmo para entrar na sua onda e apreciar o espectáculo, venha sangue espesso ou suor diáfano em tons de cinzento saltar para o ecrã de todos os lados, venham sequências completamente surreais pelo meio, venha Diane Lane com 17 anos sexualizada ao máximo, venha o que vier.
O filme tem a sua lógica interior bem delineada, mas é tão episódico e relaxado que é preciso dar-lhe tempo para nos fazer submergir no mundo de Rusty James e companhia, não por ser pouco autêntico, nada disso, antes pelo contrário, é tão livre e pouco convencional que chega a ser milagroso o quão simultaneamente poético e sincero consegue ser. Num minuto podemos ter uma luta de gangues coreografada, com uma precisão desarmante, como um número de dança, e no minuto seguinte estar a ver Matt Dillon improvisar diálogos com Mickey Rourke. Basta compará-lo com The Outsiders (gravado ao mesmo tempo) para perceber o quão invulgar Rumble Fish é; simplesmente a sua extravagância pode ser intimidante ao início. Afinal, quantos realizadores Americanos já tiveram a audácia de compilar tudo o que mais gostam no Expressionismo Alemão dos anos 20-30, na Nouvelle Vague dos anos 50-60, em Orson Welles, em Murnau, etc., tudo num filme de 90 minutos com um enredo parco?
Mas Rumble Fish não se contenta em ser um exercício em estilo, escava fundo no dia-a-dia destes adolescentes, na delinquência e na apatia, nas descobertas e nas desilusões, os seus tiques, os seus rituais, é mesmo um filme fascinado com as coisas estúpidas que se faz nessa idade, as coisas estúpidas que se diz nessa idade, aos nosso pais, aos nosso irmãos, às nossas namoradas, e, mesmo assim, ciente de que essa é quase sempre a melhor altura da nossa vida, mesmo que só o percebamos mais tarde, mesmo que tenhamos tido algumas dificuldades e inventado outras. Numa visão algo superficial, podem ser traçadas semelhanças com East Of Eden (Elia Kazan, 1955), dois irmãos com uma relação conturbada com o pai e inexistente com a mãe (Rusty James confessa mesmo desconhecer que esta ainda é viva quando o irmão lhe diz tê-la visto numa viagem que fez à Califórnia; quem já viu o filme com James Dean certamente perceberá a semelhança), mas, acima de tudo, consegue ser um filme que engloba a grande obsessão de Coppola com as relações familiares e o tempo (os relógios estão em todo o lado, por exemplo).
No entanto, falar deste filme sem fazer referência ao hipnotizante Mickey Rourke seria um crime maior do que qualquer outro cometido pelo gang da sua personagem, apenas conhecida como The Motorcycle Boy. Ainda com aquele ar melancólico de miúdo, com aquela voz melíflua de sempre, move-se por aqui com uma classe ímpar, parece, desde a primeira cena em que aparece, alguém destinado a ser adorado e, ao mesmo tempo, a ter um destino trágico. É para mais próximo nos situar de alguém assim tão paradoxal que o filme é a preto e branco, sendo passada para o espectador a visão acromática do Motorcycle Boy (apenas os peixes que tanto o fascinam aparecem a cor). Juntamente com o Randy do recente The Wrestler, este é, provavelmente, o seu papel mais memorável. Não tenho dúvidas de que Coppola seria hoje muito mais celebrado se as dificuldades financeiras que experimentou durante vários anos depois do fiasco de One From The Heart (1982) não o tivessem obrigado a sujeitar-se a fazer obras menores para saciar os estúdios que não tiveram retorno com esse investimento. Seja como for, ainda temos as tais 4 ou 5, que nunca deverão ser esquecidas. Rumble Fish tem tudo para ser uma delas.
9/10
Este é um dos meus Coppolas preferidos, talvez até pela sua 'simplicidade' (se assim se pode chamar ao cinema de Coppola) quando comparado com filmes como os Padrinhos ou o Apocalypse. Só o Motorcycle Boy é uma daquelas personagens bigger than life.
ResponderEliminarCumprimentos
Sim, é um filme com uma dimensão inferior, mas nem por isso menos eficaz e criativo. Bigger than life, indeed :)
ResponderEliminarVi-o tinha uns 13 anos (1987) e entrou directamente para o meu top 5 de filmes até então. 25 anos e milhares de filmes depois, continua lá. Mickey Rourke no seu melhor, superior ao Ano do Dragão e ao The Wrestler. E um dos raros filmes que é melhor que o livro (o único outro que conheço é A Idade da Inocência, do Scorcese).
ResponderEliminarNuno Rechena
O The Wrestler é o 2º melhor filme do Mickey Rourke. Também me parece que este é o 1º :)
ResponderEliminarQuanto a adaptações que são melhores que o livro, lembro-me de algumas: Fight Club e A Clockwork Orange, pelo menos para mim. The Age Of Innocence é um grande filme do Scorsese, muita gente não se apercebe do quão bem se insere na filmografia dele!
Obrigado pelos comentários, Nuno.
A clockwork Orange tenho de concordar, como me posso ter esquecido. Agora o Fight Club...eu até posso concordar até aos últimos dois minutos. Depois o David Fincher transformou um dos finais que mais gostei em livros dos últimos anos numa coisa apática e cheia de explosões. Aliás, tenho uma relação problemática com o David Fincher, tanto acho que o gajo é genial como o acho do mais básico que há. Enfim, se toda a gente gostasse do mesmo que seria do amarelo.
ResponderEliminarO The Age of Innocence é um dos meus preferidos dele, senão o meu preferido. Tem momentos brutais e aquele final...Fantástico.