Quando The Artist apareceu em Maio do ano passado no festival de Cannes, dificilmente alguém anteveria o sucesso que veio a ter no seio da crítica cinematográfica internacional e, em especial, numa certa e determinada cerimónia de prémios americana. Robert De Niro, na altura presidente do júri que atribuiu a Palma de Ouro a The Tree Of Life, chegou a dizer posteriormente que gostaria de ter recompensado melhor o filme mudo e a preto-e-branco de Michel Hazanavicius, conhecido (ou nem por isso), por 2 spoofs de 007. Um estilo que, outrora, seria a norma, é agora considerado arrojado e chique. Talvez nunca o tenha deixado de ser e talvez parte do sucesso do filme venha logo daí: a forma como recicla o passado para o recordar e testar a sua durabilidade.
Sim, está aqui toda a parafernália do século passado e do anterior ainda, os intertítulos, a música incessante, a proporção quase quadrada 4:3, homens com largos queixos e finos bigodes, mulheres com sinais pintados e mais, muito mais, o que poderia fazer de The Artist apenas uma sessão desenxabida de plágio e mímica, mas que, graças ao evidente amor pelo cinema de quem o escreveu e concebeu, o tornam tão charmoso como os filmes do antigamente com Douglas Fairbanks ou Rudolph Valentino, só que com uma nova dimensão de ludismo que uma sincera homenagem consegue trazer. Porque, mais do que isso, é uma ótima história de romance que tinha de ser contada desta forma.
O drama vem de expressões faciais, linguagem corporal e grandes contrastes de luz, e é tudo o que é preciso para contar a vida de George Valentin, estrela ficcional da Hollywoodland (como era referida, esperem para ver como era o mítico sinal na colina) dos anos 20, representado pelo ator fetiche de Hazanavicius, Jean Dujardin, uma encarnação perfeita do tipo de leading man da época. Fascinado por Peppy Miller (Bérénice Bejo), com quem parece destinado a encontrar-se casualmente, ajuda-a a entrar na indústria e destacar-se da concorrência. Com a chegada do som, os 2 iniciam carreiras antagónicas: ele vai perdendo protagonismo, fatal num homem boémio e que adora atenção, e ela vai subindo.
A química entre eles é óbvia, mas é minada pelas mudanças. Esse é o tema principal do filme, mudança, algo a que os EUA são sensíveis, basta lembrar os posters da campanha presidencial de Obama em 2008. O pior é quando o progresso parece ameaçar o que havia até ai, e nesse sentido Valentin está verdadeiramente ameaçado. Começam a ser-lhe oferecidos menos papéis, a esposa pede o divórcio (um casamento que não convence e é o elo mais fraco do guião), o dinheiro escasseia e o investimento num projeto condenado, que o próprio realiza, não ajuda. Em pouco tempo passa a caminhar as ruas da amargura e a afogar-se no álcool. Dujardin imprime dignidade a um homem demasiado orgulhoso e a duvidar de si.
Falar de Hugo, o outro filme famoso de 2011, é inevitável. Os dois vão, de formas muito distintas, dar ao mesmo - um através de um conto infantil e com o maior estardalhaço que as novas tecnologias permitem, o outro através de uma história de amor e infortúnio com aspeto vetusto. Hazanavicius revelou já, por várias vezes, ter sido inspirado por Wilder, Lubitsch e Hitchcock, chegando mesmo a roubar a música de Vertigo, mas é a influência do primeiro que mais se nota, especialmente quando Valentin inicia a sua curva descendente, desde cenas de bebedeira semelhantes a ver The Lost Weekend com o volume no mínimo, aos paralelismos com a atriz sem voz no ecrã Norma Desmond, de Sunset Blvd.
Mesmo sendo mudo, The Artist consegue subverter esse cinema, pois é mudo por escolha e brinca com o público por isso. Veja-se a cena do pesadelo de Valentin, em que ele não consegue ouvir a sua própria voz, um paradoxo fabuloso para o espectador, que também não ouve a voz dele, mas que é forçado a sentir o nervosismo da personagem principal, ao mesmo tempo que o score pára pela única vez no filme para ser possível ouvir tudo o mais, desde objetos a cair, a veículos à distância. A maior piada acaba por ser o destaque dado ao cão de Valentin, um ator que não fala nem que queira. E por fim, antes do cair do pano, um sinal de otimismo em relação ao futuro (you'll know it when you see it)...
The Artist é apenas o segundo filme mudo a ganhar o Óscar de Melhor Filme, depois de Wings, na primeira cerimónia. Divirto-me a pensar se teria tanto sucesso se tivesse sido feito nos anos 30. Talvez, pelo menos Hazanavicius deve pensar que sim, afinal fala-nos sobre a intemporalidade do verdadeiro talento, mesmo que a sua popularidade não esteja no topo. Claro que não sairia da mesma forma e algumas referências seriam anacrónicas, mas o poder da história é inegável, pelo fascínio do cinema, pelas interpretações comunicativas, pela gratidão de Peppy, pela humildade que a vida impõe a Valentin e a nós. Os sorrisos no fim são merecidos. From France, with love.
8/10
Excepcional review e o quanto concordo. Subscrevo o teu discuros sobre este filme maravilhoso e que muitos fazem troça pelas razões erradas.
ResponderEliminarParabéns pela bem escrita critica!
Obrigado Paulo! :D Continuo a ter pena que o The Tree Of Life não tenha sido o grande vencedor dos Óscares, mas este filme não deixa de ter muito mérito e de ser, à sua maneira, ameno e único.
ResponderEliminarGostei do texto. Eis um escrito meu sobre o mesmo filme:
ResponderEliminarhttp://blogbahianarede.wordpress.com/2012/05/24/o-artista-triunfo-do-cliche-e-discussao-de-linguagem/#more-3699
MP
Boa análise :)
ResponderEliminarEu também gostei de ver "O Artista": 4*
O filme "O Artista" é uma lufada de ar fresco para a época em que estreou.
Mas este "The Artist" não é perfeito.
Cumprimentos, Frederico Daniel.