Martin Scorsese faz um filme para toda a família. Ninguém diria, mas é verdade. Segundo o que se diz, o que aconteceu foi o seguinte: a filha mais nova do lendário realizador americano leu um livro recente de ficção histórica chamado The Invention Of Hugo Cabret e terá gostado tanto que insistiu com o pai para fazer dali um filme que ela pudesse ver, para variar, e este acabou por ceder. Pedidos de gente próxima de si geraram já dois dos seus mais conhecidos trabalhos, depois da vontade de Robert De Niro em interpretar Jake LaMotta ter levado a Raging Bull e depois da vontade de Leonardo DiCaprio em interpretar Howard Hughes ter levado a The Aviator. Mas desta vez temos aqui algo realmente diferente.
A personagem do título é um órfão parisiense que vive nas paredes da estação de comboios de Montparnasse, no início do século XX. O seu pai era um relojeiro que morreu num incêndio e lhe deixou um bizarro autómato, que deverá conseguir escrever se for arranjado e acionado através duma chave em forma de coração. O tempo é, aliás, um tema recorrente nesta celebração dum passado não muito distante, em especial desde que Ben Kingsley entra em cena como o realizador Georges Méliès, o avô ancião de Isabelle (Chloë Grace Moretz), a rapariga que forma uma amizade com Hugo e, sedenta por uma aventura, o ajuda a desvendar o mistério do boneco herdado e a reinseri-lo no mundo.
Sim, Martin Scorsese é um notório cinéfilo e um entusiástico historiador da sétima arte, sempre fazendo longos discursos sobre as suas influências em entrevistas e replicando planos ou cenas de obras-primas em momentos-chave das suas próprias obras-primas, como a mítica imagem de Joe Pesci a enfiar umas balas na câmara no fim de Goodfellas, tal como um bandido em The Great Train Robbery (Edwin S. Porter, 1903), mas não creio que alguma vez tenha feito uma homenagem ao cinema de forma tão pronunciada como aqui, a não ser talvez nos seus documentários My Voyage To Italy e A Personal Journey Through American Movies, em que parece uma verdadeira criança a falar daquilo que mais gosta.
Esqueçam por um momento a classificação etária de Hugo e concentrem-se no que claramente interessa: o amor a este ofício. Imaginem a admiração, a revelação que deve ter sido assistir à primeira sessão pública de sempre, no Grand Café em 1895, com os irmãos Lumière a exibir a sua nova invenção. Imaginem o impacto que isso deve ter tido num homem empreendedor e sonhador como Méliès. Não imaginem só, olhem para o ecrã e testemunhem. O que Scorsese captura é magia a acontecer em frente dos nossos olhos, é o que ele, é o que eu, é o que qualquer amante do cinema deve ter sentido ao entrar pela primeira vez numa sala de projeção, um fascínio inexplicável e perene pelo meio.
Do primeiro ao último frame, Hugo é uma viagem acelerada num microambiente real moldado digitalmente de forma a quase parecer um parque de diversões, numa verdadeira overdose de efeitos especiais e planos-sequência virtuosos, com personagens caricaturescas e tropelias inofensivas. Essa visão infantil é importante numa França a recuperar da Primeira Guerra Mundial e os filmes de Méliès representam, de certa forma, a ingenuidade de outras épocas, que se deve relembrar e retomar sempre que possível. Vê-los, ainda que parcialmente, no grande ecrã, e ver a reconstituição da sua conceção, na estufa-estúdio do realizador, é por si só razão suficiente para ficar com um sorriso na cara.
O gosto de Scorsese pelo que estava a fazer devia ser tal que voltou a ter um cameo, como fotógrafo, algo que não acontecia desde Gangs Of New York, outro projeto querido do nova-iorquino. A França seguia em frente, o jovem Hugo consegue seguir em frente, o cinema segue em frente, das experiências mudas ao controverso 3-D, cujo uso teima em ser cada vez mais generalizado, mas que, mais uma vez, se revela uma forma de distorcer a imagem e obrigar o espectador a gastar dinheiro em óculos de plástico, e não um mecanismo de amplificar a experiência de ver um filme. Enfim, não quero ser velho do Restelo, que este filme é sobre juventude. A segunda juventude de Martin Scorsese.
9/10
É estranho ver um filme de Scorsese tão familiar. Verdade?
ResponderEliminarGonga
http://gonga-cinema.blogspot.com
Muito verdade. Mas, ainda assim, o facto é que é muito, muito bom.
ResponderEliminarDesta vez discordo. Apesar de ser um fã acérrimo do Scorcese, ou não tivesse sido com o seu Taxi Driver que aprendi a apreciar o cinema como uma arte tendo-se esse prazer nos seus filmes prolongado com coisas como o Raging Bull, o Goodfellas, o Age of Innocence, o Kundun, o Shutter Island, etc, etc, este Hugo foi dos filmes dele que menos prazer me deu ver. Sim, achei engraçada a ideia de prestar homeagem ao início do cinema com a sua mais recente tecnologia, sim o filme tem momentos de realização sublimes, sim o filme tem uma fotografia fantástica (mas inferior à do Tree of Life), sim é um filme diferente dos outros com uma história para uma faixa etária mais jovem mas de certa forma também direccionado para faixas etárias bem mais velhas. Ainda assim, com tanto sim, há um não que me matou o filme. A história interessou-me ao ponto de eu querer saber qual era o mistério, o que acontecia ao Hugo, o que era aquele autómato, quem era aquele mágico, etc??? Não. Um profundo não. Nunca me consegui interessar pelo filme e houve vários momentos em que me lembrei da mítica frase do Homer Simpson:"BOOORING!". Sendo eu um individuo que até gosta MUITO de filmes paradões e que até viu um filme dificil como o Tree of Life 4 vezes (e tantos outros filmes dificeis que vi e revi), apenas posso dizer que o Hugo é um filme brilhante técnicamente mas que lhe falta alma, mesmo com o investimento emocional do Scorcese. 11 nomeações para óscares? Conseguia dizer 11 filmes melhores do Scorcese sem dificuldades. E não é por o filme ser infantil, eu adoro filmes infantis (particularmente do Miazaki mas isso é outra história). Este Hugo é que nunca me chegou a convencer. Certamente no próximo Scorcese já será diferente :D
ResponderEliminarOs últimos 3 filmes do Scorsese são realmente diferentes, chamem-lhe a fase pós-Óscar ou o que quiserem, mas continuo um fã e também devo grande parte do meu amor pelo cinema aos filmes e documentários dele :) Gostei muito da história, parece-me bem construída e pessoal, mesmo não tendo sido o próprio a escrevê-la, e acho que transparece todo o entusiasmo (que partilho) do Scorsese pelo passado e o futuro do cinema. O IMDb diz que o próximo vai ser o Silence, um projecto sobre padres portugueses no Japão que o Scorsese anda para fazer há décadas! Can't wait :) Abraço
ResponderEliminarEh eh, eu tb partilho desse entusiasmo pelo passado e futuro do cinema, acho que não me deu aquele clique ou então foi um mau dia para ver o filme. Irei rever eventualmente, pode ser que a opinião mude qq coisinha (embora duvide). Quanto ao continuar fã, isso é indiscutivel. Isto do gostar ou não gostar dos filmes tem destas coisas, se eu disser os meus preferidos do Scorcese (para além do Taxi Driver) como sendo a Idade da Inocência e o Kundun a maior parte das pessoas achará que eu sou louco. Da mesma maneira, os meus preferidos do Coppola são o Rumble Fish e o Peggy Sue got married. Não é que não ache os Padrinhos, os Apocalipses, os Raging Bulls e outros que tais geniais mas por estes tenho um carinho especial. Da mesma maneira que o ano passado não percebi pq o SHutter Island não foi nomeado, sendo um dos Scorcese mais inesperados e ainda assim mais brilhantes que já vi, a fazer lembrar os thillers psicológicos da década de 50, quando a Psicologia estava na moda. Quanto ao Silence, can't wait either! Quanto mais não seja pq mal falaste em padres portugueses no Japão veio-me à cabeça imediatamente o Richard Chamberlain no Shogun :D
ResponderEliminarPercebo perfeitamente, e por isso mesmo aproveito para confessar que o After Hours é um dos meus 5 filmes preferidos do Scorsese! Nunca vi o Peggy Sue Got Married... nem o Shogun :P
ResponderEliminarAdoro o after hours, só anos depois de o ver descobri que era do scorcese, apanhei-o pouco depois do inicio num sábado a noite no canal 1 era miúdo ainda. Adoro aquela história e aquela loucura. Quanto oas que nao vista, recomendo muito, mesmo muito ;)
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