Na altura em que a Nova Hollywood se instalava em pleno e
originava os primeiros blockbusters de sempre como Jaws e Star Wars, Kurosawa
andava nas ruas da amargura. O falhanço logístico de Tora! Tora! Tora!, as
crises de alcoolismo e a eventual tentativa de suicídio em 1971 ameaçavam
acabar com a sua carreira, até ao momento em que a globalização se apresentou
ao serviço e uniu os dois mundos. George Lucas nadava em dinheiro com o sucesso
da sua space opera e fazia questão de vincar a influência do realizador japonês,
pelo que ao saber do seu mau momento propôs-se, com o apoio da 20th Century
Fox, a contribuir para reverter a situação e a produzir Kagemusha.
Kurosawa havia já estruturado a história em papel e em tela,
tendo o argumento escrito e quadros pintados para deixar um registo dos seus
projectos caso não os pudesse concretizar. Talvez todo esse planeamento
explique a coesão do filme, cujos 180 minutos de duração passam sem uma cena a
mais e com um ritmo nem demasiado rápido ao ponto de parecer apressado, nem
demasiado lento ao ponto de se tornar aborrecido, algures a meio caminho entre
a acção de Seven Samurai e o desassossego de Sansho The Bailiff. Que as
espadadas entre guerreiros estejam épicas não é nada de novo, mas Kagemusha
surpreende por ser também uma experiência emocional e não só uma aventura.
Situada, como habitualmente, no Japão feudal, cujo sistema
político, social e económico assentava na lealdade, posse de terras e serviço
militar, encontramos um ladrão sentenciado à morte a receber uma segunda
oportunidade como duplo de um poderoso shogun, os comandantes militares que
reinavam de facto o país. O fascinante primeiro plano estabelece logo a
viabilidade da ideia, sendo impossível distingui-los, pelo menos a meia
distância. Ambos os papéis são interpretados por Tatsuya Nakadai, o que ajuda,
e nunca um actor esteve tão bem num filme de Kurosawa, deixando a milhas os
berros de Toshirô Mifune ou os olhos de cachorro mal morto de Takashi Shimura.
Quando Shingen é mortalmente ferido, o sósia é forçado a
tomar o seu lugar durante três anos e, ao contrário da aparência física, a cultura
dos dois não podia ser mais díspar. O primeiro exala respeito e códigos bem
definidos, pelo que é compreensível a reverência dos seus seguidores, mas ainda
mais tocante consegue ser a necessidade do segundo de agradar e cumprir a sua
missão, mesmo que cheio de dúvidas (como reflecte um surreal sonho, o meu
momento preferido). As brincadeiras com o neto do homem que substitui são um
misto magistral de desconforto e afecto. Esta dimensão só tem rival em Ran
(1985), o que me obriga a agradecer a… George Lucas, pela preponderância no
regresso de Kurosawa.
8/10
Ainda não tive oportunidade de assistir este trabalho de Kurosawa, assim como "Ran", que estou com uma cópia para conferir.
ResponderEliminarAbraço