O Morro da Babilónia é das favelas mais antigas e conhecidas
do Rio de Janeiro. Localizado num cume íngreme que separa a praia de Copacabana
da praia de Botafogo, os seus residentes têm uma vista privilegiada sobre o Pão
de Açucar das suas decrépitas casas. Dificilmente se encontra um cenário de
pobreza que contraste tanto com a beleza natural e das infraestruturas que o
rodeiam, logo tem uma qualidade cinemática inegável que não passou ao lado de
José Padilha quando fez Tropa De Elite nem de Marcel Camus na altura em que
realizou Orfeu Negro.
Separados por quase 50 anos, a documentação das mudanças que
o local sofreu com o passar do tempo é talvez única e certamente chocante: no
registo visual mais recente vemos um mar de tijolos mal empilhados onde se
movimentam traficantes de droga, um ambiente claustrofóbico e ameaçador que
assusta até a grande maioria das forças policiais, no mais antigo deparamo-nos
com uma comunidade alegre a tentar fazer pela vida, ganhando pouco dinheiro em
trabalhos menos recompensadores, mas honestos e livres da criminalidade.
Orfeu Negro não teve a recepção mais consensual no país que
retrata na altura do seu lançamento, tendo sido criticado por apresentar
irrealisticamente o Brasil como uma festa constante, o que é verdade, mas falha
o propósito do filme. Muito antes de Baz Luhrmann transformar clássicos da
literatura renascentista e mitos gregos em romances adolescentes ou musicais,
Marcel Camus teve a ideia de dar à lenda de Orfeu e Eurídice um contexto
moderno que realçasse a musicalidade e o dramatismo que lhe está inerente. Nada
melhor que o Carnaval e a Bossa Nova.
Tom Jobim e Luiz Bonfá partilham com o mundo o seu género
associado à classe rica branca e tornam-se cúmplices, ao assinar a banda sonora,
de um espectáculo de cor e ritmo incessante que se funde com o samba das
favelas e os dois protagonistas pretos. Desde que desembarca no porto, Eurídice
entra modestamente no mais extravagante dos palcos, de imediato cercada por
homens que a cortejam e vendedores que a requisitam, arrastando-a para uma
viagem de eléctrico pela cidade, por coincidência guiado por Orfeu, que está
prestes a ficar noivo de Mira.
A história clássica de amor predestinado mas perdido
encontra no futebolista Breno Mello e na desconhecida Marpessa Dawn uma
genuinidade lírica e desenvolve-se com um entusiasmo contagiante, mesmo quando
a morte paira sobre os enamorados, sob a forma de um mascarado que chega ao
Carnaval directamente do passado de Eurídice. Vencedor da Palma de Ouro e do
Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, Orfeu Negro é um retrato de outros tempos,
uma introdução ao pico da criatividade cultural brasileira e um trabalho de
mise-en-scène dum exotismo exuberante.
9/10
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