quinta-feira, 16 de maio de 2013

The Best Intentions (Bille August, 1992)


Não gosto muito daquele discurso da treta de realizadores que falam dos seus filmes como se todos fossem filhos e os amassem de forma igual; até aí há sempre favoritos, por muito desconfortável que seja admiti-lo, por isso, analogamente, é óbvio que todos os artistas têm projectos de estimação. The Pianist de Polanski, sobre sobrevivência durante o Holocausto, instintivamente atinge uma precisão emocional que dificilmente alguém que não tivesse passado pela mesma experiência que a personagem principal conseguiria transmitir. Scorsese queria tanto homenagear os clássicos que mais o inspiravam, de Minnelli a DeMille, que quando New York, New York se revelou um fracasso nas bilheteiras e foi recebido com relativa indiferença pela crítica, ele sucumbiu à depressão - a verdade é que tinha completado o seu trabalho mais virtuoso tecnicamente. Em suma, é fascinante quando alguém passa anos e anos a urdir uma ideia, investe tempo, dinheiro e neurónios a tentar mostrar algo de novo e de pessoal e eventualmente consegue chegar a um produto final, mesmo que os seus méritos não se venham a revelar consensuais. Por tudo isto, o fim da carreira de Ingmar Bergman assume contornos paradoxais.

Depois de em 1982 se ter retirado do cinema com Fanny And Alexander, um drama familiar ficcional e que adquire contornos fantasistas, 10 anos volvidos surge este The Best Intentions, um drama familiar baseado no matrimónio dos seus pais e que prima por um espírito de reconstituição irredutível. Apesar de ser possível considerar que o primeiro é um resumo mais completo da carreira do mestre sueco, relembrando o universo onírico de The Magician, as peças de época como Sawdust And Tinsel, a nostalgia febril de Wild Strawberries, entre outros exemplos, não posso deixar de definir o segundo como o argumento mais incisivo e paciente no que diz respeito a relações humanas enquanto motores de frustração, alegria, dor, força e desilusão que alguma vez escreveu, o que, no fundo, acaba por ser natural, ou não fosse o seu próprio nascimento um dos últimos acontecimentos retratados, ou seja, viveu o que vemos. O que levanta a questão: será possível a familiaridade com uma ideia ser tão opressiva que a única solução para garantir a sua viabilidade é delega-la a outrem? O simples facto de The Best Intentions obrigar à partida a ponderar esta inversão de lógica torna-o obrigatório.

Claro que importa referir que é Bille August quem toma as rédeas das câmaras e o dinamarquês não só não é avesso a filmes enraizados num passado específico como sempre deu prioridade a um estilo discreto e clássico, o que se prova facilmente com Pelle The Conqueror, pelo qual ganhou uma Palma de Ouro. O seu perfeito sentido de timing e a montagem contínua são tudo o que estes actores e diálogos precisam para brilhar. Poucas cenas iniciais estabelecem o tom geral como aqui: Henrik é um seminarista protestante que visita o avô. Este ficará viúvo brevemente e torna-se logo evidente que contactou o neto por razões unicamente egoístas. Abandonou-o e à mãe quando eles mais precisavam e agora que vê a vida passar à frente dos olhos arrepende-se e quer pedir a Henrik que o perdoe e à esposa, que está no leito da morte. A resposta é negativa. Apesar da reacção do jovem ser compreensível, ao mesmo tempo é tão fria que quase parece obscena. Mais tarde, reprova num exame e a sua mãe decide mentir às primas para pedir emprestado dinheiro para continuar a pagar as propinas. Uma delas consegue-a desmascarar de uma forma que roça a humilhação, ainda que tenha falado com ela em privado.

Como defender um lado quando aceitamos as motivações de todos em cada confronto? Henrik vem de um meio pobre e quando conhece Anna o contraste é tão grande que lhe é difícil não ficar maravilhado e apaixonado… tal como é impossível a relação que os dois encetam não chocar com os padrões e expectativas da família dela, especialmente depois de o pai (interpretado por Max von Sydow, ou seja, classe garantida), a referência de união e ponderação para Anna e os irmãos, morrer. The Best Intentions pode ser dividido em 2 partes: as dificuldades que precedem e as que resultam de um casamento. Bergman escreve sobre ambas com uma honestidade desarmante, não se coibindo de caracterizar os progenitores como 2 pessoas muito teimosas, o pai tendencialmente agressivo, a mãe excessivamente mimada, mas a acompanhar toda esta ausência de melodrama está uma compaixão profunda e uma contextualização reveladora. Fazer um filme de 5 horas e meia é um luxo que poucos realizadores têm hipótese de empreender, mas manter por 5 horas e meia este nível de constância é uma tarefa que poucos realizadores têm talento para professar.

Isto já para não falar na fotografia de Jörgen Persson, que transforma cada plano num quadro, e na banda-sonora simples, trágica e intrigante, que faz todo o sentido com personagens que sofrem tantos revés, por culpa deles ou das circunstâncias, e que os confunde e leva a tomar más decisões, mas não faz desaparecer uma ligação que não se explica, sente-se. Claro que para aqueles que nunca nutriram grande afeição pelo autor (coitados) não vão mudar de opinião com isto. Aquilo que para alguns é demasiado eloquente, quase teatral, para muitos é pura poesia, uma gestão perfeita do diálogo e da sua simbiose com a imagem. Bergman (e não nos vamos enganar, este filme é mais seu que de August) não é naturalismo, talvez realismo, mas acima de tudo desconstrução - as palavras são um puzzle de infinitas possibilidades, que as personagens usam para agredir, esconder, redimir ou contradizer e o mundo em que estas vivem parece mudar consoante o que dizem e não dizem mais do que o fazem ou não fazem, porque ele se interessa menos pelos factos e pelos actos e mais pelas intenções, que, devemos acreditar, são sempre as melhores, num salto de fé maior que os exigidos por qualquer religião. Será possível que Bergman não tenha realizado The Best Intentions porque também queria acreditar mas nem sempre o conseguia fazer?

10/10

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