Tomboy é o termo inglês para maria-rapaz, por isso quando
vemos Laure pela primeira vez, a espreitar pelo tejadilho dum carro em
movimento, com as mãos a esvoaçar ao sabor do vento e à medida que as árvores
correm ao longo da estrada na direcção contrária, numa sequência inicial que
poderia ter saído de Last Days (Gus Van Sant, 2005) ou chegado via The
Passenger (Michaelangelo Antonioni, 1975), sabemos tratar-se de uma rapariga –
e no entanto, a sua androginia é tão exacerbada que duvidamos, pelas suas
roupas e corte de cabelo, mas também pelas suas expressões, pelas suas
reacções, pelo contraste com quem a rodeia, até a sua nudez confirmar o que
sabíamos desde logo.
Esse sentido de confusão é o tónico da história e, tal como
Laure, tendo-se mudado com a família para outra cidade, convence os seus novos
amigos, apesar de algum desajeito, de que é um menino chamado Mickael e vai ao
pormenor de pôr um chumaço de plasticina no fato-de-banho para perpetuar essa
mentira, é importante que Céline Sciamma consiga estabelecer o mesmo
desconforto no espectador o mais cedo possível e fazê-lo perdurar, sem intender
chocar. Assim, Tomboy torna-se uma questão de identidade; o pai e a mãe de
Laure são amáveis e permissivos, a irmã Jeanne é tipicamente feminina, por
isso, se não é o meio, que potencia este comportamento e que consequências
acarretará?
O papel resulta graças ao casting: a estreante Zoé Héran
encapsula as semelhanças entre crianças em fase pré-puberdade e a sua
expressividade serve na perfeição a não verbalização das questões em jogo. Vemos
o que quisermos quando a vemos no campo de futebol, a tomar banho em casa, a
beijar a vizinha ou a apalpar o peito em frente ao espelho. Disto resulta mais
naturalidade do que embaraço, o que traz a calma necessária a uma incomum
abordagem à sexualidade em idade de inocência. Sejam quais forem as perguntas e
respostas, há um grau de tolerância, que até pode não se transformar em
compreensão, de um ou do outro lado do ecrã, mas aguça a curiosidade.
Quando o verão se aproxima do fim, a verdade vem ao de cima.
A mãe confronta Laure com pedagogia e emoção, não a punindo pelo que sente, mas
expondo a desonestidade da sua atitude. Céline Sciamma alude a uma memória
comum da infância, sob uma perspectiva de auto-descoberta que pode ter tanto de
pessoal como de metafórica, revelando uma realizadora que em pleno processo
criativo encontra a sua voz sendo evocativa. Entrelaçam-se a economia de Robert
Bresson e a melancolia de Sofia Coppola, combinam-se o confronto
livre-vontade/determinismo e a vontade de viver e chega-se a um filme enigmático
e esteticamente irrepreensível, como já o era Water Lilies. Melhor é difícil de
imaginar.
9/10
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