domingo, 30 de junho de 2013

Tomboy (Céline Sciamma, 2011)

Tomboy é o termo inglês para maria-rapaz, por isso quando vemos Laure pela primeira vez, a espreitar pelo tejadilho dum carro em movimento, com as mãos a esvoaçar ao sabor do vento e à medida que as árvores correm ao longo da estrada na direcção contrária, numa sequência inicial que poderia ter saído de Last Days (Gus Van Sant, 2005) ou chegado via The Passenger (Michaelangelo Antonioni, 1975), sabemos tratar-se de uma rapariga – e no entanto, a sua androginia é tão exacerbada que duvidamos, pelas suas roupas e corte de cabelo, mas também pelas suas expressões, pelas suas reacções, pelo contraste com quem a rodeia, até a sua nudez confirmar o que sabíamos desde logo.

Esse sentido de confusão é o tónico da história e, tal como Laure, tendo-se mudado com a família para outra cidade, convence os seus novos amigos, apesar de algum desajeito, de que é um menino chamado Mickael e vai ao pormenor de pôr um chumaço de plasticina no fato-de-banho para perpetuar essa mentira, é importante que Céline Sciamma consiga estabelecer o mesmo desconforto no espectador o mais cedo possível e fazê-lo perdurar, sem intender chocar. Assim, Tomboy torna-se uma questão de identidade; o pai e a mãe de Laure são amáveis e permissivos, a irmã Jeanne é tipicamente feminina, por isso, se não é o meio, que potencia este comportamento e que consequências acarretará?

O papel resulta graças ao casting: a estreante Zoé Héran encapsula as semelhanças entre crianças em fase pré-puberdade e a sua expressividade serve na perfeição a não verbalização das questões em jogo. Vemos o que quisermos quando a vemos no campo de futebol, a tomar banho em casa, a beijar a vizinha ou a apalpar o peito em frente ao espelho. Disto resulta mais naturalidade do que embaraço, o que traz a calma necessária a uma incomum abordagem à sexualidade em idade de inocência. Sejam quais forem as perguntas e respostas, há um grau de tolerância, que até pode não se transformar em compreensão, de um ou do outro lado do ecrã, mas aguça a curiosidade.

Quando o verão se aproxima do fim, a verdade vem ao de cima. A mãe confronta Laure com pedagogia e emoção, não a punindo pelo que sente, mas expondo a desonestidade da sua atitude. Céline Sciamma alude a uma memória comum da infância, sob uma perspectiva de auto-descoberta que pode ter tanto de pessoal como de metafórica, revelando uma realizadora que em pleno processo criativo encontra a sua voz sendo evocativa. Entrelaçam-se a economia de Robert Bresson e a melancolia de Sofia Coppola, combinam-se o confronto livre-vontade/determinismo e a vontade de viver e chega-se a um filme enigmático e esteticamente irrepreensível, como já o era Water Lilies. Melhor é difícil de imaginar.

9/10

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