quarta-feira, 27 de novembro de 2013

LISTAS: Cahiers Du Cinéma (2013)

Como é habitual, a conceituada revista francesa Cahiers Du Cinéma publicou o seu top10 do ano, que inclui bastantes surpresas e nomes menos óbvios. Este ano sem portugueses e com um repetente de 2012, Hong Sang-Soo.

  1. Stranger By The Lake (Alain Guiraudie)
  2. Spring Breakers (Harmony Korine)
  3. Blue Is The Warmest Color (Abdellatif Kechiche)
  4. Gravity (Alfonso Cuarón)
  5. A Touch Of Sin (Jia Zhangke)
  6. Lincoln (Steven Spielberg)
  7. La Jalousie (Philippe Garrel)
  8. Nobody's Daughter Haewon (Hong Sang-Soo)
  9. You And The Night (Yann Gonzalez)
  10. La Bataille De Solferino (Justine Triet)

domingo, 24 de novembro de 2013

A Promessa (António de Macedo, 1973)

Uma carroça atravessa as dunas e chega a uma aldeia piscatória, perdida na areia e no tempo. Dois ciganos procuram ajuda médica para o irmão que foi esfaqueado, mas ninguém nas redondezas está qualificado para os ajudar a esse nível. O sacristão da capela, José, e a família oferecem-lhe asilo e comida, que acreditam ser suficiente, já que as feridas não parecem ameaçadoras. Enquanto esperam por melhorias, os outros instalam-se com uma tenda numa praia próxima e rapidamente se empenham em sacar dinheiro vendendo relíquias pagãs aos locais, aproveitando-se da sua pouca instrução e da sua fé, que tanta preponderância tem sempre nestas comunidades.

A presença dos estrangeiros deixa de inspirar desconfiança para passar a representar medo quando estes raptam uma jovem e desaparecem, não se coibindo de deixar o irmão para trás, que desde o início demonstra ter outro tipo de morais e atitudes. À medida que vai recuperando as suas forças prepara-se para os confrontar, nem que isso implique violência, estabelece amizade com quem o acolheu e muda-se para um moinho velho, talvez por querer a distância que a sua etnia normalmente procura, talvez por não querer estorvar e muito menos dar azo a burburinhos sobre a ajuda que recebe de Maria enquanto o marido José está no mar, especialmente quando toda a gente sabe da promessa…

Nas vésperas do seu casamento, o casal fez um voto de castidade, na esperança de o pai dele conseguir voltar a terra durante uma tempestade particularmente violenta. Um ano volvido, a falta de envolvimento físico parece ter conduzido a relação para um impasse. Grato a Deus por ter afastado a tragédia, ele não pondera voltar atrás com a sua palavra, nem mesmo tendo o aval do jovem padre João, que considera mais importante salvar o matrimónio. A religião é indissociável da aldeia, mas os sacrifícios em nome dela são feitos de claras contradições terrenas. O padre antigo admite, por exemplo, ao mais novo que até a igreja se rege pelo dinheiro e há que aproveitar a festa de S. Pedro para ganhar algum. Qual é a diferença para os ciganos?

Como Pasolini, António de Macedo consegue criar um mundo muito próprio, ermo e ventoso, que quase parece ter sido fabricado para o filme. Os travellings vacilantes e a mistura de som, com os diálogos de umas cenas a intrometerem-se noutras, criam um sentimento visceral de confusão e incerteza que ultrapassa os desenvolvimentos da história e reflecte a postura católica típica relativamente à sexualidade. O realizador, no último plano, estaria, acredito, consciente da polémica que certas imagens provocariam e joga com a forma como a vilificação da nudez no cinema chega a sobrepor-se, infamemente, ao impacto de uma morte, como se o coito fosse um pecado maior que o assassínio. A Promessa é inconfundivelmente português.

8/10

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

CITAÇÕES: The Life Of Emile Zola (William Dieterle, 1937)

Emile Zola (Paul Muni): Think of it, thousands of children sleeping peacefully tonight under the roofs of Paris, Berlin, London, all the world, doomed to die horribly under some titanic battlefield, unless it can be prevented. And it can be prevented! The world must be conquered, not by force of arms, but by ideas that liberate. Then we can build it anew. Build for the humble and the wretched.

quarta-feira, 20 de novembro de 2013

Green Street Hooligans (Lexi Alexander, 2005)

Um excelente filme sobre o fanatismo do futebol, sem deixar de celebrar a beleza do espectáculo em si. Esta brilhante música foi composta e interpretada por Terence Jay, actor que faz de Jeremy Van Holden, o colega de quarto de Matt Buckner (Elijah Wood) em Harvard que é a razão pela qual este é expulso da universidade e vai para Inglaterra.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Wings (William A. Wellman, 1927)

Wings detém a distinção de ter sido o primeiro vencedor do Óscar de Melhor Filme, o que por si só lhe garante um lugar nas memórias de Hollywood. A história de dois jovens da mesma terra, apaixonados pela mesma mulher, que se alistam na força aérea para combater alemães na Europa pode parecer familiar, ou não tivesse servido de inspiração para outro sucesso de bilheteira mais recente, Pearl Harbor (Michael Bay, 2001). Com mais ou menos pieguice, essa é uma prova de que o melodrama tem uma qualidade intemporal, mas felizmente há pontos de maior interesse para além de pequenas curiosidades.

Com efeito, a fotografia deste filme é incontornável – constatar que a gravação das mais complexas manobras da aviação de guerra imaginárias, a quilómetros de altitude, foi possível no ano em que finalmente se conseguia juntar som à imagem numa sala de montagem com os pés bem assentes na terra é surpreendente. Seria de esperar que a segunda fosse mais simples, mas as câmaras montadas nos cockpits e controladas à distância inventadas por William A. Wellman e o director de fotografia Harry Perry, usadas em cerca de trezentas horas de voo, proporcionam ainda hoje um excitante espectáculo de cinema mudo.

O realizador tinha apenas 29 anos quando foi escolhido pela Paramount, em grande parte devido à sua experiência como piloto durante a Primeira Guerra Mundial, e talvez se possa dizer que essa conjugação de factores tenha dado um empurrão essencial para uma carreira com personalidade vincada. O seu espírito desafiante e a sua sensibilidade contida provaram ser uma conjugação rara, dando origem a clássicos como The Ox-Bow Incident ou The Public Enemy, onde o perfeccionismo técnico não se separava de preocupações morais associadas à violência ou histórias de sobrevivência.

A paixão por voar e as dinâmicas de grupo masculinas ganham destaque com Wellman, pelo que Wings, apesar de ser mais uma encomenda do que um filme de autor, ficando patente que já em 1927 os triângulos amorosos e os efeitos visuais eram puxados para a linha da frente, tem, então, indelevelmente, a sua marca. Mesmo com a presença de Clara Bow, rainha do grande ecrã na altura, é mais interessante a amizade entre Jack e David, que acaba com um beijo de reconforto e admiração que certamente não passaria pelo Hayes Code, e as cenas de guerra, mais amplas e menos realistas que as de All Quiet On The Western Front em 1930.

7/10

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

TRAILERS: Magnolia (Paul Thomas Anderson, 1999)

O terceiro filme de Paul Thomas Anderson continua a ser um grande épico do quotidiano, repleto de momentos únicos, masterclasses de interpretação e planos virtuosos. Sempre gostei deste trailer, que o próprio realizador fez, beneficiando da liberdade total que lhe foi dada na altura.

domingo, 10 de novembro de 2013

My Fair Lady (George Cukor, 1964)

Os anos 1960 foram a última época dourada do musical em Hollywood, basta ver que nessa década foram quatro os vencedores do Óscar de Melhor Filme que se inserem nesse género e, desde então, houve apenas Chicago. Não sendo o maior fã de ver pessoas começarem a cantar de cada vez que algo minimamente relevante, positivo ou negativo, lhes acontece, forçando rimas e falhando o playback, há sempre excepções. My Fair Lady não é uma delas e as razões vão muito para além dessa questão.

Rex Harrison interpreta um pretensioso mestre da fonética, aparentemente desempregado mas rico, que dedica os dias a adivinhar a proveniência de quem encontra na rua através dos seus sotaques. Em Londres consegue colocar alguém a uma distância máxima de dois quarteirões donde moram, o que seria cómico se não fosse totalmente irrealista e irrelevante. À saída da ópera, atura uma vendedora de flores com voz particularmente esganiçada que nem a fuligem na cara oculta ser Audrey Hepburn.

O professor Higgins comenta na altura com um amigo, o coronel Pickering, que conseguiria fazer da rapariga, a quem dá uma boa esmola (talvez por masoquismo tenha gostado de ser levado à irritação), uma duquesa, se tentasse. Eliza Doolittle ouve, leva as palavras demasiado a sério e no dia seguinte aparece à porta do homem com o intuito de pagar por aulas de dicção, para, no mínimo, poder subir na vida até florista numa loja. Tratada como lixo, aceita submeter-se a todo um curso de boas maneiras.

O que a conquista são os chocolates que o professor lhe oferece quando ela se preparava para bater a porta, vexada. Sim, porque toda a gente sabe que as mulheres não resistem a bombons e nada tem mais piada do que vê-las sujeitarem-se a abusos psicológicos por velhotes que não têm nada para fazer só para terem essa recompensa. Bem, o pai de Eliza aparecer em casa de Higgins para exigir 60 libras para álcool e deixar a filha entretanto a morar lá parece ser pelo menos tão engraçado para o argumentista.

Ainda assim, uma música com as empregadas como coro diz-nos que devemos sentir pena do doutor, porque odeia a coitada que se sujeita a quase tudo para que ele satisfaça o seu complexo de superioridade mas perde horas de sono para a transformar numa senhora. Infelizmente, o filme gera um conflito de intenções ao pôr Hepburn com vontade de matar o seu malicioso patrono. Apesar de tudo, ninguém a está a obrigar a nada. Tem roupas e calorias à borla. Mesmo que por capricho dele, não está mau.

Eliza pronuncia bem, ao cabo de meses, a lengalenga “the rain in spain stays mainly in the plain”, segue-se uma música que consiste apenas dessa frase com a ordem das palavras trocada (porque rima sempre, que esperteza!) e outra sobre dançar à noite (wtf?) e assim sabemos que está pronta para ser introduzida na alta sociedade, incluindo ir às corridas de cavalos e ao baile do embaixador, os momentos ideais para a actriz exibir a sua beleza em dois vestidos de designer e conhecer um interesse amoroso.

Interesse que é mais dela, amor mais dele, e só fica a vaga noção de que num futuro para além do argumento pode haver algo entre eles porque o rapaz é tão persistente quanto rico e ingénuo (de tal forma que admite, rimando “before” com “before”, que se apaixonou assim que a menina contou como o pai era um bêbado) e parece dormir no passeio durante dias enquanto a acção se desenvolve, à espera de a rever. Freddy é apenas a segurança de Eliza e, como tal, o mais triste namoradinho da história do cinema.

Com o sucesso que faz nas suas aparições públicas, alimenta o ego de Higgins, que dá o seu projecto por concluído, tornando-se claro que não tem mais planos para a artista anteriormente pertencente às classes baixas. Parece que só ao voltar do baile ela se apercebe de que é descartável e a partir daí temos de ter pena dela, porque, claro, não pode voltar para donde veio. Agora é uma princesinha e tem direito a todos os luxos do mundo, pela simples razão de que passou a estar habituada a isso.

Ao mesmo tempo, por ironia do destino e não por ter recebido auxílio da filha, o seu pai passou também a fazer parte da classe média, mas está insatisfeito porque a vida deixou de ser simples e de consistir de dormir, beber e pedir emprestado. Agora tem de ceder aos vícios e malefícios inerentes à sua nova condição, como casar-se, ir à igreja ou ter de pagar pelo que consome. Como é perigosa e má para a sociedade a classe média, comparando com a nobreza do alcoolismo e da pobreza!

Esse encontro fortuito não muda a relação entre ambos - apenas sedimenta na mente de Eliza a ideia de que não pode voltar atrás. Então, procura a protecção da mãe de Higgins (que deve ter 200 anos, já que ele parece um octagenário) e que se mostra chocada com o facto de o filho ter sido extremamente claro quanto a apenas querer usar Eliza… como se alguém lhe tivesse apontado uma pistola à cabeça e não chocolates. Higgins é um idiota, mas apenas por não ter, pelo menos, sacado um beijo à Audrey Hepburn.

Porque é que isso não acontece? Talvez por ele ser mais gay do que o José Castelo Branco (e pior cantor – a sério, eu a gorgolejar Betadine para a halitose canto melhor que o Rex Harrison aqui). My Fair Lady contém as músicas mais ofensivas para o sexo feminino que eu já ouvi; percebo que o propósito fosse explorar com alguma ligeireza a misantropia do professor, mas o seu assumido desejo de que as mulheres se parecessem mais com os homens roça o ofensivo e cultiva a ideia de que o coronel Pickering deve ser o seu amante.

Depois disto tudo, Higgins tem um momento de fraqueza e canta que precisa daquela asinina, ela que nunca fez nada em casa, que lhe volta as costas, que vira a mãe contra ele e que apenas estorvava a vida do “pobre doutor”. Eliza volta mesmo e sorri perante a sugestão de uma tarefa doméstica. Depois de todos os berros de Hepburn, de se ouvir o sotaque britânico até à náusea durante três horas, das facadas na nobre arte da canção, este momento de silêncio consegue ser o mais irritante do filme.

Pegue-se por onde se pegar, My Fair Lady é um desastre de história, de interpretações, e inclusivamente musical. As duas personagens principais são movidas por um egoísmo feroz, apenas reforçando que não importa de onde se vem, o que importa é a educação que se tem. Eliza é estragada por duas figuras de total incompetência, o pai e o professor, e o resultado é uma mulher brejeira mas peneirenta. Foi por causa de filmes destes que apareceu a Nova Hollywood.

1/10

sábado, 9 de novembro de 2013

TOP5: Neorealismo Italiano

A trilogia de Rossellini, composta por Rome, Open City (1946), Paisan (1946) e Germany, Year Zero (1948) abriu os olhos do mundo para o neorealismo italiano; contudo, é Ossessione (1942), a obra de estreia de Visconti, que vulgarmente é aceite como a génese deste género voltado para a vida do povo e que recusava a artificialidade dos estúdios, consequência de uma maior consciência social e histórica imputada pela destrutiva Segunda Guerra Mundial. De seguida, destaque para cinco obras de realizadores diferentes.

05. Without Pity (Alberto Lattuada, 1948)
Longe de ser dos mais famosos, Without Pity é a história emotiva de uma italiana e um soldado americano negro apaixonados. Dificilmente outro filme mostra com a mesma vividez as indefinições do pós-guerra imediato.

04. The Earth Trembles (Luchino Visconti, 1948)
Apesar de Ossessione granjear mais fama, prefiro The Earth Trembles. Com menos enredo, permite-se a momentos de pura contemplação das rotinas numa aldeia piscatória, um pouco como se pode ver em Stromboli, de Rossellini.

03. The Tree Of Wooden Clogs (Ermanno Olmi, 1978)
Este é de longe o mais recente da lista, mas justifica-se. O estilo de Olmi encaixa na definição do género, até ao pormenor do uso exclusivo de não-actores, e é incrível como um filme de três horas sobre várias famílias que trabalham na mesma quinta no início do século XX se torna tão absorvente pela simples reconstituição de tarefas rurais.

02. Paisan (Roberto Rossellini, 1946)
Paisan é algo atípico - constituído por seis episódios, sem relação entre eles, mas de alguma forma relacionados com a entrada dos Aliados no cenário europeu, é abrangente em temas, períodos, situações e locais. Apesar da estrutura fragmentada, não há qualquer perda a nível de consistência estética, sempre prevalente a vontade de mostrar a condição humana nas situações mais adversas.

01. Bicycle Thieves (Vittorio De Sica, 1948)
Porque é que Bicycle Thieves é tão frequentemente referido como o melhor do neorealismo italiano? Porque a história é intemporal e apresenta dilemas morais imediatamente reconhecíveis e que suscitam respostas ambivalentes. Um homem pobre consegue um emprego, para o qual é essencial a sua bicicleta. Quando esta é roubada em plena luz do dia, o seu desespero e da família, incluindo do filho Bruno, ataca com força o coração. Até onde consegue um homem honesto aguentar quando o mundo parece conspirar contra si? Vittorio De Sica e Cesare Zavattini dão assim origem a um clássico de uma simplicidade desarmante.

terça-feira, 5 de novembro de 2013

CURTAS: Schwechater (Peter Kubelka, 1958)

O título desta curta advém do nome da cerveja para a qual o austríaco Kubelka devia realizar um anúncio. A demora em entregar um produto final fazia antever algo caro ou grandioso, mas afinal o resultado foi... este! Usando uma câmara sem lente, filmou uma pessoa a beber, montou os frames de formas estrambólicas e reproduziu-os rapidamente e repetidamente, para obter 90 segundos de puro mindfuck.

domingo, 3 de novembro de 2013

The Sound Of Music (Robert Wise, 1965)

A história da freira austríaca que tinha imenso jeito para cantar e para lidar com crianças é das mais conhecidas do cinema. The Sound Of Music é um filme que atravessa gerações e talvez detenha o recorde de repetições na RTP1, quanto muito tendo a concorrência de Ben-Hur para esse título. Por conseguinte, está tão batido que falar nele, quanto mais mencioná-lo como um dos melhores musicais de sempre, tornou-se trivial, e esse é o primeiro passo para o subestimar criminosamente.

Não sou um grande fã do género, que raras vezes me surpreende e me estimula, por isso acreditem quando digo que esta é uma excepção monumental, quase tanto como a cidade de Salzburgo que, encravada no meio dos Alpes com a sua arquitectura barroca e com o seu rio serpenteante, serve de cenário mais que perfeito tanto para as cenas mais citadinas e sombrias como para as cenas mais bucólicas e agrestes. Sim, porque é bom relembrar que, a pairar sobre as baladas e os namoricos, está a ameaça nazi.

Logo de começo, os mais icónicos planos de helicóptero gerados antes de The Shining, que mostram a região com vividez, até se encontrar Julie Andrews de avental no topo de uma colina com os braços abertos, prestes a irromper na canção do título, que nem é a minha preferida. Essa, não só pela esperteza da letra como por ser utilizada em momentos extremamente díspares em termos de tom, é a “Do-Re-Mi”, com a qual Maria, já fora do convento e a fazer de governanta, apresenta a arte aos filhos do capitão von Trapp.

As músicas fazem a ocasião e a grande maioria simplesmente resulta, seja pela alegria da descoberta do amor e da reconstrução de uma família, seja pela tristeza do fim da Áustria como até ali se conhecia. O filme é movido por noções de maternidade – Maria consegue encontrar a sua verdadeira vocação e tornar-se essencial na vida dos sete irmãos, órfãos de mãe e verdadeiros pesadelos para dezenas de amas, ao mesmo tempo que perdem juntos a pátria-mãe, vendo-se mesmo forçados a deixar tudo e a fugir para a Suiça.

Não é fácil equilibrar comédia e drama com esta harmonia; veja-se como a evolução de Rolfe, um moço de recados que aparece regularmente na mansão dos von Trapp para entregar telegramas e cultivar a sua paixoneta (correspondida) por Liesl, a mais velha, acontece com tanta subtileza que no fim se fica mais triste do que surpreendido com os seus actos. Primeiro parece bom rapaz, mas muitas classes abaixo de Liesl. Mais tarde, começa a fazer a saudação da extrema-direita. No fim, denuncia quem antes admirava.

Quando se fala de The Sound Of Music nunca se fala do sabor agridoce que deixa por sabermos que, embora os protagonistas se safem, milhões de pessoas não beneficiaram da mesma sorte, muitos tiveram de aceitar à força cargos na aparelhagem de Hitler, como exigiram a Georg von Trapp, outros foram presos e o resto viu tudo à sua volta ser destruído nos anos que se seguiram. Para mim, é isto que separa o filme, podia mas não acaba no casamento, oferece um final feliz mas vai um pouco mais além do entretenimento.

A realização de Wise é excelente; fico surpreendido com a facilidade com que consegue adaptar-se a géneros diferentes, por ventura à custa duma identidade própria, mas quem filma tão bem boxe (The Set-Up), terror (The Haunting) e musicais merece respeito. Os 70mm de bitola permitem uma grandiosidade memorável, a primeira visão, tirada a regra e esquadro, do interior da casa ou as cenas do festival são exemplos. Sim, The Sound Of Music já deu na TV mais vezes que a Praça da Alegria, mas continua a ser um grande clássico.

9/10