Ah, Ingmar Bergman… O expoente
máximo do cinema intelectual e o mais aborrecido dos autores concentrados na
mesma pessoa, se considerarmos as opiniões dos seus admiradores e detratores
lado a lado. Em nome da objectividade, talvez devesse moderar estas divergências
e caminhar para um meio termo, mas sinceramente, o sueco realizou 40 filmes ao
longo de 38 anos, todos eles, independentemente do género e da idade, com uma
ímpar compreensão das relações humanas em todas as vertentes possíveis e
imaginárias, por isso confesso a minha dificuldade em aceitar qualquer
menosprezo que lhe seja dirigido.
Crisis é a antecâmara dos
conflitos pessoais, das interpretações com apontamentos teatrais e dos tons escuros regulados pela mais perfeita iluminação que são transversais a Summer
With Monika, Through A Glass Darkly ou Face To Face, mesmo depois da passagem
para a policromia. Primeiro cenário: uma vila pacata no interior do país, onde
mora Ingeborg, uma mulher estéril e solteira, com Nelly, a filha adoptada de 18
anos que é a sua razão de viver. Certo dia, chega Jessie, a mãe biológica,
surpreendentemente equilibrada e disposta a reconstruir uma espécie de família
a três na grande cidade, junto ao namorado actor, Jack.
Já nesta estreia é admirável a
compreensão crescente que se vai tendo da psicologia de cada personagem, da
preocupação de Ingeborg em manter Nelly por perto enquanto esconde a
deterioração da sua saúde, das ilusões e desilusões próprias da juventude da
rapariga ou da vacuidade letal que Jack cultiva, no fundo do estado de
espírito e das amarras que os (as) prendem a todos(as). Bergman tece uma rede de intenções,
mal-entendidos, desejos e frustrações com um detalhe notável. Estas pessoas no
ecrã têm vida, a eloquência do argumento e o controlo da mise-en-scène, ainda
maiores nas décadas seguintes, clarificam e amplificam o nosso apego às suas
histórias.
Quanto a problemas específicos da
menor maturidade evidente em Crisis contam-se alguns: a narração é dispensável,
dá-se relevo ao isolamento da vila ser apenas contrariado pelo autocarro que lá
passa diariamente, no entanto as viagens que vão surgindo fazem-se por via
férrea e Ulf parece demasiado velho e dessintonizado da vivacidade de Nelly
para se assumir como o par adequado. Não é o filme mais evoluído a nível visual,
o que não impede o baile de caridade e a noite no salão de ficarem na memória.
Nem o amor nem o desprezo por Bergman passam por aqui; este é um pequeno e
adorável primeiro filme, mas o início de tanto mais.
8/10
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