A estreia de um novo filme de Quentin Tarantino é sempre um
evento, tão próprio é o seu estilo e tão idiossincrática é a sua personalidade.
Ainda assim, desta vez ele decidiu levar a expressão a outro nível, reavivar o
formato Ultra Panavision 70, que usa a maior bitola cinematográfica de todas e
estava desaparecido desde Khartoum (Basil Dearden, 1966), obrigar à
substituição dos projetores digitais de salas um pouco por todo o mundo por
projetores de película e criar um espetáculo itinerante à antiga para anunciar
o seu regresso.
Este circo parece-me particularmente adequado para The
Hateful Eight, que representa a “experiência Tarantino” no seu estado mais
extremo. Apenas o díptico Kill Bill ultrapassa os 167 minutos deste western. Os
capítulos e flashbacks não faltam. Na banda-sonora, consuma o seu fetiche de
ter material original do mítico Ennio Morricone. Estão de volta Michael Madsen,
Tim Roth ou Kurt Russell, a juntar a outros regulares. O seu truque de abrandar
o ritmo com frente a frente intermináveis e juntar protagonistas num espaço
reduzido nos clímax para efeito dramático é aqui esticado a uma história
inteira.
Corre a ideia de que os filmes deste realizador estão
repletos de ação frenética, o que está longe da verdade. A extravagância não
tem limites na construção das personagens, nos diálogos sem filtros, na
violência explícita ou nos movimentos de câmara, o que dá azo a muito frenesim.
No entanto, para compreender o seu funcionamento há que notar como Pulp Fiction
culmina num monólogo transcendente à mesa de um diner ou como os heróis de
Django Unchained são expostos num jantar de meia hora à luz das velas. As
melhores cenas são lentas, compridas, tensas e reveladoras.
The Hateful Eight é isso quase do início ao fim. Marquis
Warren (Samuel L. Jackson) crava boleia a John Ruth (Kurt Russell) no meio de
uma tempestade até um alojamento conhecido na zona. São ambos caçadores de
recompensas, o primeiro acredita na lei da bala, o segundo entrega os
criminosos vivos à justiça. Precisamente por isso, transporta consigo Daisy
Domergue (Jennifer Jason Leigh, a interpretação mais marcante, com a cara
coberta de sangue e os olhos cheios de loucura), que deverá ser enforcada numa
cidade ali perto. Eles e outros seis viajantes vão ter de esperar que a neve
pare de cair à volta da mesma lareira.
Claro que cada um tem o seu motivo para ali estar e um
passado com ramificações até aquele momento. As surpresas precipitam as trocas
de tiros, até porque é a mais apurada coleção de misantropos de Tarantino
alguma vez vista, o que claramente o divertiu durante o processo de escrita.
Ruth espanca a mulher que carrega sem receio de ser apelidado de misógino. No
seu masoquismo, Daisy lambe as feridas que lhe abrem na cara. Marquis mente a
torto e a direito. O resto do pessoal é racista, tanto contra os pretos como
contra os mexicanos (incluindo uma afro-americana que não deixa gringos entrar
no seu estabelecimento).
Todos esses rótulos foram usados erradamente ao longo dos
anos pelos críticos para descrever o autor em questão, por isso desta vez vira
o bico ao prego e ninguém no filme tem quaisquer qualidades redentoras. Claro
que não é o seu melhor trabalho, mas se todos conseguissem sambar na cara das
invejosas com esta destreza e esta criatividade, o mundo seria um lugar melhor.
The Hateful Eight é um espetáculo que só podia vir da cabeça de uma pessoa à
face do planeta, um western na neve mais impiedoso que Day Of The Outlaw (André
De Toth, 1959) que se assemelha a um whodunnit mais exaustivo do que Reservoir
Dogs.
8/10
Ótimo texto. Eu sou do grupo que aprecia qualquer “experiência Tarantino”. Ele é ousado e original. Uma mente inquietante e saudosista em respeito ao cinema. "Os Oito Odiados" é um suspense dos bons, daqueles que me deixam entorpecidos diante a tela. E, sim, lembra muito "Cães de Aluguel". Pra mim, é um western adormecido que hiberna naquele inferno branco.
ResponderEliminarTambém escrevi sobre o filme
https://cinemarodrigo.blogspot.com.br/search/label/Quentin%20Tarantino
Abraço
Rodrigo
Obrigado Rodrigo :)
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